outubro 25, 2025

*************** AVA GARDNER - FILMES e AMORES

 

 

O animal mais belo do mundo.
JEAN COCTEAU
(1889 – 1963. Maisons-Laffitte / França)
 
Sou uma mulher extremamente bonita
em qualquer idade.
AVA GARDNER
 
apelido: Snowdrop e Angel
altura: 1,68 m
cabelos: negros
olhos: verdes
Algumas estrelas ficaram na história privada de Hollywood como devoradoras de homens. Entre elas, Clara Bow e Louise Brooks, ainda no cinema mudo; Joan Crawford, Vivien Leigh, Lana Turner, Marilyn Monroe, Grace Kelly, Natalie Wood, Jayne Mansfield e Ava Gardner. Suas vidas amorosas estamparam manchetes de jornais e colunas de fofocas, colecionando escândalos mundo afora. A deslumbrante AVA GARDNER (1922- 1990. Grabton, Carolina do Norte / EUA) foi uma espécie de Warren Beatty (grande conquistador até se casar com Annette Bening) de saias. Na sua lista amorosa, sem contar os maridos oficiais – Mickey Rooney, Artie Shaw e Frank Sinatra -, constam o bilionário Howard Hughes, o presidente John F. Kennedy, o ditador Fidel Castro, o cineasta John Huston, o toureiro Luiz Miguel Dominguin e os atores Robert Mitchum, Robert Taylor, George Raft, David Niven e Steve McQueen, numa intimidade tema de inúmeros livros e documentários. Em sua passagem pelo Brasil, em 1954, assediou o cantor Carlos Augusto, da Rádio Nacional, famoso na época. Só que ele era gay.

Disposta a tudo pelos homens que desejava, ela eventualmente enfrentou rivais. Em 1958, uma notória saída noturna em Roma, em amores com Anthony Franciosa, casado então com Shelley Winters, terminou em uma batalha feminina. A esposa do ator não gostou nem um pouco da infidelidade e as duas se esbofetearam publicamente em um hotel. O ator George C. Scott também frequentou seus lençóis durante as filmagens de
“A Bíblia / The Bible in the Beginning...” (1966). Protagonizavam uma relação não exatamente pacífica, costumando resultar em tapas violentos. Antes de ser severamente espancada por ele, ela declarou: “A gente se ama. Ele me bate porque me ama”. Ela bebia vorazmente uísque, conhaque, tequila e o que mais aparecesse. Independente e impetuosa, seus tórridos romances alimentaram o mito de mulher fatal. Em 1955, no auge do sucesso, mudou-se para a Espanha, tornando-se musa de festas intermináveis e de toureiros. O interesse surgiu antes, em 1950, ao filmar “Pandora / Pandora and the Flying Dutchman” (1951), de Albert Lewin, em Tossa de Mar, na Catalunha.

A atriz se encantou com a vida noturna espanhola, a cultura romântica e os sensuais toureiros, estabelecendo uma sincera e duradoura identificação com o país. No bonito filme de Albert Lewin, Pandora destrói tudo e todos a seu redor, até que surge em sua vida o Holandês Voador, personagem enigmático que James Mason dota de aura mística. Na tumultuada visita ao Brasil, no lançamento do icônico “A Condessa Descalça” (1954), foi manchete mundial. Bêbada, em um acesso de fúria, quebrou a mobília e jogou objetos de decoração pela janela do então luxuoso Hotel Glória. Por onde passou, o alcoolismo e as aventuras sexuais deixaram um rastro de excessos. A bebida e o cigarro foram sempre companheiros fiéis. Dizia que morreria com um cigarro na mão e um uísque na outra. Envolveu-se com o toureiro Mario Cabré, que arriscou a vida por ela nas arenas. Em 1953, rodando na África “Mogambo” – sua única indicação ao Oscar – descobriu estar grávida de Frank Sinatra. Ao abortar em Londres, uma escala em Madri a levou aos braços de Dominguín, outro famoso toureiro.

Filmando na Itália
“A Condessa Descalça”, aprofundou sua relação com Dominguín através de maratonas de sexo. Ao comprar um casarão em La Moraleja, em Madri, estabeleceu um quartel general para festas que duravam um final de semana e incluíam corridas de touros e apresentações de flamenco. Representado o que os ainda provincianos espanhóis censuravam – uma mulher sozinha, sem religião e, além disso, atriz -, passou a ser tratada como uma ameaça para as famílias respeitáveis, sendo vetada em lugares como o Hotel Ritz. Parceira de Ernest Hemingway na farra espanhola (ela protagonizou três adaptações de sua literatura, “Os Assassinos”, “As Neves de Kilimanjaro” e “E Agora Brilha o Sol”), em 1959 visitou Cuba, hospedando-se na casa do escritor, onde se banhava na piscina totalmente nua. Ao conhecer o ditador Fidel Castro no Havana Hilton, se deu muito bem. Castro a tratou com extravagante galanteria e a levou para um passeio em sua moradia. Sentaram-se na varanda com vista para a cidade, beberam Cuba Libre, conversaram sobre a revolução e foram para a cama.

Sempre com a amante e tradutora do ditador de Cuba, Marita Lorenz, em alerta máximo, a atriz começou a cortejar Castro, e as duas mulheres tiveram um confronto violento no saguão do Hilton. Ébria, acusou Lorenz, a quem chamava de
“vadiazinha”, de esconder seu chefe. Então a seguiu até um elevador e lhe deu um tapa no rosto. Um guarda-costas sacou uma arma e a partir daí Castro decidiu se livrar da sedutora turbulenta arranjando um amante bonitão para AVA GARDNER, que a satisfazia em uma suíte no Hotel Nacional, como cortesia de Cuba. Em 1961, aos 39 anos, depois do suicídio do amigo “Papa”, Nobel de literatura, do fracasso da produção “La Maja Desnuda / The Naked Maja” (1958) e de um acidente que deixou incômodas sequelas, a formosa estrela findou a escandalosa e apaixonada relação com a Espanha, mudando-se para o Reino Unido. Por lá ficou até morrer em 1990. Sempre irreverente e atrevida, era, nas palavras de seu segundo marido, Artie Shaw, “a criatura mais linda que já vi”. Ela também era, de acordo com sua colega britânica Deborah Kerr, “engraçada, afetuosa e humana”.

De espírito aventureiro, teve uma existência repleta de luxúria, amores e travessuras noturnas. Nasceu na Carolina do Norte, em uma fazenda de tabaco, filha de agricultores humildes. Aos 18 anos, uma foto sua colocada na vitrine do estúdio fotográfico do seu cunhado, em Nova York, chamou a atenção de um caça talentos da Metro-Goldwyn-Mayer, que a contratou por sua estonteante beleza. Em 1946, emprestada à Universal Pictures, estrelou o clássico policial noir “Os Assassinos” e sua carreira começou a brilhar. Em “Mogambo”, contracenou com Clark Gable e Grace Kelly, tornando-se uma das poderosas estrelas de sua geração. Participou de mais de 40 filmes, passando seus últimos anos reclusa em um apartamento em Londres com a governanta de longa data, Carmen Vargas, e o amado cão Welsh Corgi, Morgan. Dois derrames em 1986 a deixaram parcialmente paralisada. “Estou tão cansada”, disse pouco antes de morrer de pneumonia aos 67 anos. Vargas levou seu corpo para a Carolina do Norte, em um enterro privado. Nenhum de seus ex-maridos compareceram, mas o seu grande amor Frank Sinatra chorou por horas por não estar naquele momento com ela.

PRIMEIRO CASAMENTO: MICKEY ROONEY
(1942 - 1943)

Contratada pela Metro-Goldwyn-Mayer, onde ficaria até 1958, em seu segundo dia em Hollywood ela foi levada para conhecer os estúdios onde trabalharia. Num deles, o astro Mickey Rooney filmava a comédia “Calouros na Broadway / Babes on Broadway” (1941), vestido como Carmen Miranda. Ao vê-la, correu em sua direção com saltos altos. “Tudo em mim parou”, ele escreveria em suas memórias, “Meu coração. Minha respiração. Meu pensamento.” Ao se apresentar, ela se sentiu lisonjeada. Era o astro de maior bilheteria da meca do cinema desde 1939.  Depois de se fazer de difícil por um tempo, AVA GARDNER aceitou um encontro com o ator carismático e persistente. Cinco meses depois eles se casaram com o apoio do produtor Louis B. Mayer em uma cerimônia discreta e sem publicidade, na pequena igreja branca em Ballard, Califórnia, em 10 de janeiro de 1942. Ela usou um tailleur azul, com um buquê de orquídeas Cattaleya em vez de um típico vestido de noiva. Os únicos convidados presentes no casamento foram a irmã de Ava, Bappie, os pais de Mickey e Les Petersen, o assessor pessoal do astro.

Passaram a lua de mel no Del Monte Hotel, perto de Carmel, na Península de Monterey. Logo após, ela o acompanhou em uma turnê de guerra que incluiu paradas em Boston, Nova York, Fort Bragg e Washington DC. A nova Sra. Mickey Rooney ainda estava nos estágios iniciais de sua carreira, então era ele a estrela em todos os lugares que iam.  AVA GARD
NER tinha apenas 19 anos quando se casou com Mickey Rooney, de 21, e o casamento rapidamente fracassou e começou a ruir. Mesmo apaixonado pela esposa, ele parecia se esquecer que era casado, e tinha diversos casos com outras mulheres. Ela não suportou por muito tempo as constantes infidelidades do marido e, depois de pouco mais de um ano, pediu o divórcio, que foi oficializado em 21 de maio de 1943.

SEGUNDO CASAMENTO: ARTIE SHAW
(1945 - 1946)
Pouco tempos depois, conheceu o músico de jazz Artie Shaw, acreditando ser o amor de sua vida. O artista era culto e podia falar de qualquer coisa com profundo conhecimento, encantando a amada por essa característica. No entanto, ele resolveu transformá-la numa erudita. Se ela não acompanhasse seus assuntos, a humilhava em frente a seus amigos. Assim, a relação não tardou a ter problemas. Ao conhecê-lo, ele havia acabado de retornar da Segunda Guerra Mundial e era um músico popular. Ela depois escreveria em sua autobiografia, “Ava: Minha História”: “Meu Deus, que homem lindo! Artie era bonito, bronzeado, muito seguro de si e não parava de falar. Era tão caloroso e charmoso que me apaixonei por ele. Foi o primeiro intelectual que conheci, e ele me conquistou.” Os dois namoraram por vários meses, antes dela se mudar para a casa dele em Beverly Hills, no verão de 1944. Na época, AVA GARDNER ainda fazia pequenos papéis e tinha tempo para viajar com ele e sua banda pelo país. Aos 22 anos, e ele, aos 35, casaram-se em 17 de outubro de 1945 na mansão em Beverly Hills, na Bedford Drive.

O quinto casamento dele. Em outro casamento modesto, ela usou um terninho azul com um buquê de orquídeas. Passaram a lua de mel no Lago Tahoe por uma semana. Embora brigassem muito, também tinham muito romance. Ele a incentivou a ler e aprender sobre temas que iam da literatura ao xadrez. Para agradá-lo, ela matriculou-se em cursos na UCLA e estudava durante o tempo livre. No fim das contas, o desejo dele de transformá-la em uma intelectual azedou o romance. Ele tentou despertar nela um interesse duradouro por literatura, arte, música clássica, filosofia e política. Ela ficou magoada e se mudou de casa. Então se divorciaram no México e ele logo se casou com sua sexta esposa, a escritora Kathleen Winsor. Eles ficaram casados por um ano. Segundo ela,
“Artie foi uma das dores mais profundas da minha vida. Eu estava apaixonada, eu o venerava, e acho que ele nunca entendeu o dano que causou ao me menosprezar... Mesmo assim, permanecemos próximos. Ele me ensinou a estudar, a pensar, a ler... É impossível conviver com ele, mas é um homem extraordinário.”

TERCEIRO CASAMENTO: FRANK SINATRA
(1951 - 1957)

A lendária história de amor de AVA GARDNER e Frank Sinatra começou no outono de 1949. Casado e bêbado, ele a convenceu, igualmente embriagada, a deixar uma festa em Palm Springs oferecida pelo chefe do estúdio, Darryl F. Zanuck. Eles encheram a cara noite adentro, até chegarem à pacata cidade de Indio. Depois de alguns amassos, ele sacou uma arma e atirou em postes de luz. Excitada, ela juntou-se a ele e atirou na vitrine de uma loja de ferragens. Terminaram em uma delegacia, que depois seria subornada pelo estúdio. Ambos se apaixonaram perdidamente um pelo outro, em um relacionamento intenso, com brigas públicas e privadas. O que começou com uma aventura extraconjugal, tornou-se um escândalo que as revistas de mexericos estampavam nas manchetes. Quando Frank e Nancy Sinatra iniciaram um longo processo de divórcio, AVA GARDNER foi acusada de “destruidora de lares”, recebendo ameaças do público enfurecido. Finalmente livres em outubro de 1951, não perderam tempo e se casaram em 7 de novembro de 1951 na Filadélfia, Pensilvânia. 

Ela tinha 28 anos e ele, 35. No seu terceiro e último casamento, ela usou um vestido lilás, um colar duplo de pérolas, brincos de pérola e diamantes, e um buquê natural de camélias e cravos em miniatura. Após a cerimônia, partiram para a lua de mel em Miami, procurando escapar dos fotógrafos. Sinatra sempre dizia que a única coisa que importava era sua música, mas quando encontrou AVA GARDNER, ela passou a ser o que ele precisava. Parecia o começo de um conto de fadas, mas logo, a relação começou a deteriorar. Na mira da imprensa internacional, foi um casamento marcado por brigas lendárias, bebedeiras, separações, tapas, drogas, infidelidades, três tentativas de suicídio dele e dois abortos – ela afirmava não querer trazer uma criança para um lar tão selvagem. Tiveram um romance turbulento e apaixonado, com muitos altos e baixos. Eram tensos, possessivos, ciumentos e propensos a explosões temperamentais. A pressão aumentou ainda por Frank Sinatra estar no ponto mais baixo de sua carreira. Ela emprestava dinheiro para ele, que estava falido, pagava até suas passagens aéreas.

Tudo mudou economicamente depois que ele ganhou o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante por sua atuação no premiado drama de guerra 
“A Um Passo da Eternidade / From Here to Eternity” (1953), de Fred Zinnemann.  Com o casamento em ruínas, eles decidiram se separar em 1953, embora o divórcio só fosse oficializado em 1957. Mesmo após a separação, os dois permaneceram amigos próximos pelo resto da vida. Ela o considerava o maior amor de sua vida. Ele lhe enviava um enorme buquê de flores todos os anos em seu aniversário e ficava de olho para que nada faltasse a sua amada.
10 FILMES de AVA
(por ordem de preferência)

01
A CONDESSA DESCALÇA
(The Barefoot Contessa, 1954)

direção de Joseph L. Mankiewicz
elenco: Humphrey Bogart, Edmond O'Brien,
Valentina Cortese e Rossano Brazzi

02
Os ASSASSINOS
(The Killers, 1946)

direção de Robert Siodmak
elenco: Burt Lancaster, Edmond O'Brien e Albert Dekker

03
A NOITE de IGUANA
(The Night of the Iguana, 1964)

direção de John Huston
elenco: Richard Burton, Deborah Kerr e Sue Lyon

04
MOGAMBO
(Idem, 1953)

direção de John Ford
elenco: Clark Gable e Grace Kelly

05
SETE DIAS de MAIO
(Seven Days in May, 1964)

direção de John Frankenheimer
elenco: Burt Lancaster, Kirk Douglas, Fredric March,
Edmond O'Brien, Martin Balsam e George Macready

06
E AGORA BRILHA o SOL
(The Sun Also Rises, 1957)

direção de Henry King
elenco: Tyrone Power, Mel Ferrer, Errol Flynn,
Eddie Albert, Gregory Ratoff, Juliette Gréco
e Marcel Dalio

07
AS NEVES de KILIMANJARO
(The Snows of Kilimanjaro, 1952)

direção de Henry King
elenco: Gregory Peck, Susan Hayward, Hildegard Knef
e Marcel Dalio

08
A ENCRUZILHADA dos DESTINOS
(Bhowani Junction, 1956)

direção de George Cukor
elenco: Stewart Granger e Bill Travers

09
55 DIAS em PEQUIM
(55 Days at Peking, 1963)

direção de Nicholas Ray
elenco: Charlton Heston, David Niven, Flora Robson,
John Ireland, Leo Genn, Robert Helpmann,
Paul Lukas, Massimo Serato e Jacques Sernas

10
O GRANDE PECADOR
(The Great Sinner, 1949)

direção de Robert Siodmak
elenco: Gregory Peck, Melvyn Douglas, Walter Huston,
Ethel Barrymore, Frank Morgan e Agnes Moorehead    
FONTES
“Ava Gardner: The Secret Conversations” (2016)
de Peter Evans
 
“Ava Gardner: Love is Nothing”
(1990)
de Lee Server
 
“Ava – Minha História”
(1991)
de Ava Gardner
 
“Ava's Men: The Private Life of Ava Gardner”
(1990)
de Jane Ellen Wayne
 
“Conversations with Ava Gardner”
(2014)
de Lawrence Grobel

 
GALERIA de FOTOS



outubro 11, 2025

************ A LEI do CACAU: SANGUE e LOUCURA


 

Olhe o sol. Vê meu sangue, minhas feridas,
meu lodo - é tudo teu. Te ofereço o que sou.
Não minha vida que não tem valor,
mas minha vontade de matar
que não tem preço.
OTHON BASTOS 
como Sete Vezes
 
Sob a inspiração do teatro da crueldade,
esta alegoria do desengano em terras
periféricas ganha um teor apocalíptico
muito próprio e agressivo.
ISMAIL XAVIER
(1947. Curitiba / Paraná)
“Os Deuses e os Mortos: Maldição dos Deuses
ou Maldição da História?” (1997)

 
 
Esquecido durante décadas, recordado por poucos, inclusive no próprio Sul da Bahia onde foi filmado, bonito pedaço de mundo onde nasci à sombra da Mata Atlântica e beirando o Rio Cachoeira, Os DEUSES e os MORTOS (1970) dialoga com as alegorias de Glauber Rocha, em um universo mágico-religioso exaltando o poder e a decadência, a violência e a insanidade, numa parábola sobre a ambição. Ouvi falar dele nos anos 80, em uma publicação da extinta Embrafilme. Tentei ansiosamente vê-lo, escrevendo ao seu diretor, Ruy Guerra, e ele respondeu que infelizmente seria impossível, não havia cópia à disposição, nem mesmo os produtores (um deles, o ator Paulo José, então casado com Dina Sfat, que faz parte do elenco) tinham os negativos. “É da maior importância e tem uma fotografia extraordinária de Dib Lutfi”, contou-me poucos anos depois Othon Bastos, o ator baiano protagonista desse faroeste tropical, como o classificou o jornal “The New York Times”, em 1972, tecendo conexão ao emblemático italiano “Três Homens em Conflito / Il Buono, il Brutto, il Cativo (1966), de Sergio Leone, com Clint Eastwood.
 
O roteiro escrito por Guerra, Flávio Império e Paulo José, centra-se na Bahia dos anos 1930, na disputa entre duas famílias tradicionais, os Santana da Terra e os D’Água Limpa, por matas para a plantação de cacau. Othon representa um forasteiro enigmático, sete vezes baleado, que após se recuperar da chacina, rude como os seus algozes, num sentimento de vingança, se intromete violentamente nesse conflito entre clãs de coronéis pela posse da terra e do cacau. Segundo o teórico Ismail Xavier, ele é “a figura suja, contaminada, que emerge como que da terra, trazendo no corpo as marcas de uma tradição local associada ao sangue, à lama”. Espécie de morto-vivo, esse papel bizarro foi fundamental na brilhante carreira de Othon Bastos, resultando em um trio de excelentes filmes que fez no Cinema Novo – os outros dois, “Deus o Diabo na Terra do Sol” (1964) e “São Bernardo” (1972). Escolhido para o seco personagem Sete Vezes, Walmor Chagas pegou hepatite e foi substituído em cima da hora por Othon, que na ocasião fazia a telenovela “Super Plá”, de Bráulio Pedroso, na Tupi.
 
Nos anos 70, em pleno Regime Militar aceito por milhões de brasileiros, multiplicaram-se os filmes nacionais. O cinema dito de esquerda alimentava-se das verbas públicas do Instituto Nacional de Cinema e, depois, na Embrafilme. Além de financiar a maior parte da nossa cinematografia, o governo federal distribuía os prêmios Coruja de Ouro – uma espécie de Oscar subdesenvolvido, com dinheiro e troféu. Muitos comunistas ganharam grana fácil, enquanto criticavam os milicos. Como acontece ainda hoje. Nessa mescla de paternalismo e mecenato, a glória do cinema oportunista. Somente em 1970 foram produzidos 82 filmes. O problema (o mesmo de hoje) era a exibição. Os artistas enchiam os bolsos e seus filmes toscos não eram lançados e, quando exibidos, ficavam uma ou duas semanas em cartaz, rejeitados pelo público. Fazendo turismo com o dinheiro do nossos impostos, eles corriam o mundo em festivais de cinema. Exatamente como em 2025. Nada de novo no front. Os DEUSES e os MORTOS se apresentou no Festival de Berlim, concorrendo ao Urso de Ouro (Melhor Filme) e provocando mal-estar.
 
“Causou impacto por causa da crueza. Tem uma cena em que muitas pessoas fechavam os olhos: o Nelson Xavier começa a escorregar e eu o amparo com uma navalha, cortando o seu corpo. Aquele ambiente, aquela sujeira da cidade. É muito épico, de grande força. Ele é um libelo tremendo. Na época, não houve protesto, nem vaia. Era de beleza extraordinária. Feito com amor, muita luta, numa época do auge do cinema”, recorda o ator principal. Cineasta de altos e baixos, Ruy Guerra deixou fitas ruins ao longo do caminho cinéfilo mundo afora, mas será lembrado por “Os Cafajestes” (1962), “Os Fuzis” (1964) e “A Queda” (1976). Dos 16 filmes que fez, “Os Fuzis” é o seu melhor momento. Depois de restaurado pela Cinemateca Brasileira, finalmente assisti Os DEUSES e os MORTOS, experimentando o passado grapiúna. Numa mistura de decadência e insanidade, a obra experimental, de um sincretismo sem contorno claro, reúne um elenco de primeira qualidade, o mestre Dib Lufti como diretor de fotografia e o mineiro Milton Nascimento na autoria da soturna trilha sonora de conotação litúrgica.
 
A música tema, mística e ritualista, “Matança do Porco, composta por Wagner Tiso, faz parte do álbum homônimo de estreia da banda Som Imaginário, daquele mesmo ano, e passaria para o repertório de Milton no disco “Milagre dos Peixes”, de 1973. O cantor também atua no longa-metragem, interpretando o pistoleiro Dim Dum. O elenco ainda inclui a participação especial do sambista Monsueto Menezes. Nos bastidores, diversos casos descontraídos: Milton trancado num quarto pelo cineasta até que compusesse o “Tema dos Deuses”. O roubo de um pato para a equipe esfomeada cozinhar. E, após fazer amizade com um dos figurantes, Milton ganhando para alegria de muitos um engradado de cachaça ruim. Na época, o tema da decadência de famílias ligadas à propriedade da terra ganhou relevo no cinema brasileiro. “Os Herdeiros” (Carlos Diegues, 1969) focaliza a crise dos barões do café; “A Casa Assassinada” (Paulo César Saraceni, 1971) traz a crônica patriarcal no interior de Minas Gerais, e “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (Glauber Rocha, 1969) inclui o declínio dos coronéis do sertão.
 
dina sfat
Inspirado em “Terras do Sem-fim” (1943), da fase cacaueira de Jorge Amado, Os DEUSES e os MORTOS retrata uma luta de interesses econômicos na zona dos cacauais. Uma corrida-do-ouro que atrai aventureiros, jagunços, sertanejos fugitivos da seca, prostitutas, vigaristas. Entre diálogos longos, um drama violento, com banhos de sangue, mortos no chão e pendurados nas árvores. Uma cultura sanguinária, cruel. Ruy Guerra inicialmente tentou filmar o romance amadiano, mas os direitos autorais estavam cedidos a um produtor norte-americano. Rodado em Itajuípe, Ilhéus e arredores, expõe o exótico nacional sob uma influência do barroco, vê-se como uma tripe psicodélica (em que muitos leram o esgotamento das fórmulas impopulares do próprio Cinema Novo), na qual se juntam uma audácia formal e político-poética. O crítico literário Antônio Houaiss o definiu como representante do neo-barroquismo (ao lado de “Azyllo Muito Louco”, 1970, de Nelson Pereira dos Santos; “Pindorama”, 1970, de Arnaldo Jabor; e “Prata Palomares”, 1972, de André Faria).
 
Em tom de quase fábula, o roteiro faz uso de metáforas para explicitar a luta do homem contra o sistema. O som místico, quase etéreo, combina com o enredo fantasmagórico. Como se personificasse as vozes e imagens da loucura, ao lado do rosto deformado do personagem de Othon Bastos e das cenas repulsivas de sangue e lama. Outro aspecto importante em Os DEUSES e os MORTOS é o notável trabalho de elenco, com poderosas performances de Bastos, Dina Sfat, Ítala Nandi, Norma Bengell e Nelson Xavier. Sfat, uma das maiores atrizes do cenário artístico tupiniquim, fez 19 filmes e morreu de câncer, aos 50 anos, em 1989. Norma Bengell, talvez a nossa maior estrela de cinema, está magnífica como sempre. Outro aspecto importante é o trabalho de fotografia de Dib Luft, numa sucessão de planos-sequência marcados pelos movimentos de câmara-na-mão, zanzando em torno das malditas figuras que entram e saem de tela. Destaque para a cena dos jagunços perfilados na praça, com armas, à espera do confronto. A seguir, esses lutadores agonizam. Tudo sangue, poeira e gemidos.
 
Como se vê, esse processo cinematográfico sanguinário de exploração de uma terra para o cultivo do cacau, não é um épico fácil, ou gostamos ou odiamos a experimentação estilística, não há meio termo. É de um tempo em que a arte cinematográfica nacional tinha personalidade, se arriscava sem limites, além da clonagem atual da pouco fértil dramaturgia televisiva. Adianto que o cinema nacional do presente me deixa entediado. Anda sem identidade, com artistas mirando verbas fáceis e o oportunista discurso militante da petezada. Os DEUSES e os MORTOS teve estreia nacional em Ilhéus, a 12 de dezembro de 1970, e lançamento, no Rio de Janeiro, a 30 de agosto de 1971, em bom circuito, mas fracassou retumbantemente na bilheteria. Na epifania turística, participou nos festivais de Cannes e Berlim, sendo definido pelo alemão Werner Herzog, com quem Ruy Guerra viria a trabalhar como ator dois anos depois em “Aguirre, a Cólera dos Deuses / Aguirre, der Zorn Gottes (1972), como um dos melhores filmes de todos os tempos. Exageros à parte, é uma criação que merece sem dúvida ser redescoberta.
 
 TEMA dos DEUSES
(Canção de Milton Nascimento)
DEPOIMENTOS
 
PAULO JOSÉ
(1937 – 2021. Lavras do Sul / Rio Grande do Sul)
produtor

“Ruy Guerra vinha de um filme muito cabeça e de pouco público, realizado na Europa, chamado ‘Sweet Hunters’. Queria fazer um filme que atraísse boa bilheteria. Começamos a conversar. Pensamos em algo como um western brasileiro. Nossas referências foram ‘Yojimbo’, de Akira Kurosawa, uma espécie de western japonês, com uma briga sem fim entre duas famílias, e o italiano ‘Por Um Punhado de Dólares’, que Sérgio Leone realizou a partir do filme de Kurosawa. Resolvemos ambientar nosso filme nas plantações de cacau do sul da Bahia. Claro que o romance ‘Terras do Sem-Fim’, do Jorge Amado, foi uma de nossas leituras. Concluído, o longa-metragem foi lançado comercialmente. O resultado de bilheteria foi um desastre. Ficou uma ou duas semanas em cartaz”
 
RUY GUERRA
(1931. Maputo / Moçambique)
diretor

“Esse filme é talvez o passo mais importante desde ‘Deus e o Diabo na Terra do Sol’ para definir uma realidade cultural, religiosa e humana do brasileiro, que não depende apenas do situacionismo econômico e histórico, que não se restringe ao enquadramento de uma condição tangível no mapa e no barômetro da história oficial. O comportamento mágico aferido ao personagem central do filme, o Sete Vezes, interpretado por Othon Bastos, está infinitamente ligado com o fato dele não ser caracterizado em termos de passado, presente ou futuro, o que desindividualiza, o torna atemporal e alegórico; o desejo impessoal do poder. E o tema fundamental do filme é exatamente a tomada do poder a qualquer custo. William Shakespeare foi praticamente o co-roteirista desse filme”.
 
OTHON BASTOS
(1933. Tucano / Bahia)
ator

“O meu personagem tem uma cicatriz, uma ferida no rosto, uma ferida enorme. Se eu fosse filmar às seis horas da manhã, eu acordava às três para a maquiadora fazer a maquiagem toda. A maquiagem fedia que era uma loucura. E eu tinha que ficar o dia inteiro com aquilo, e o Ruy tinha mania de pegar lama e ficar colocando por cima da ferida. A Norma Bengell não sabia que o meu personagem tinha essa ferida e eu tinha uma cena de amor com ela, em cima do cacau, da semente de cacau. Uma cena linda, shakespeariana. Quando eu vou beijá-la, ela não aguenta, quase vomita de nojo e do cheiro daquela coisa. Quando cortou, a Norma xingou o Ruy, me xingou. Mas vendo o filme era um negócio impactante e todo improvisado no sentido da interpretação.”
 
othon bastos como sete vezes
ORAÇÃO de SETE VEZES
 
Não tenho nome, o que pouco ou nada importa
andei nas aventuras do mundo, o que também não basta
Na cabala dos sete eu levei agora o chumbo
que guardo na carne, não por vontade minha ou de Deus
mas por vontade do mais forte que manda no fogo e na ferida
Para quem traz as mãos nuas de ferro e sangue as ideias
se perdem no som das palavras de protesto
Sete Vezes me chamo até onde pode a memória
e de sete caminhos vou chegar a destino
que não aceito e não nego
Das misérias engoli a lama, esterco, urina
Guardei o corpo e o pensamento imaculado
como uma vestal- agora basta
De meus dez dedos vou fazer outros caminhos de vitória
As tatuagens de sangue que me deram os poderosos
são os sinos de minha bandeira
Não quero saber o porque
Se a lei é o sangue e o jogo é o ouro,
no sangue e no ouro vou buscar resposta.

 
ítala nandi como sereno
Os DEUSES e os MORTOS
(1970)
 
país: Brasil
duração: 100 minutos
Cor
produção: César Thedim e Paulo José 
(Daga Filmes e Produções Cinematográficas / Grupo Filmes / 
C.C.F.B. - Companhia Cinematográfica de Filmes Brasileiros / 
Companhia Cinematográfica Vera Cruz)
direção: Ruy Guerra
roteiro: Ruy Guerra, Paulo José e Flávio Império
fotografia: Dib Lutfi
edição: Ruy Guerra e Sérgio Sanz
música: Milton Nascimento
cenografia e vestuário: Marcos Weinstock
elenco: 
Othon Bastos (“Sete Vezes”), Norma Bengell (“Soledade”), 
Rui Polanah (“Urbano”), Ítala Nandi (“Sereno”), Dina Sfat (“A Louca”), 
Nelson Xavier (“Valu”), Jorge Chaia (“Coronel Santana”), 
Vera Bocayuva (“Jura”), Fred Kleemann (“Homem de branco”),
 Vinícius Salvatore (“Cosme”), Mara Rúbia (“Prostituta”), 
Monsueto Menezes (“Meu Anjo”), Milton Nascimento (“Dim Dum”), 
Gilberto Sabóia (“Banqueiro”) e José Roberto Tavares (“Aurélio”).
 
nota: *** (bom)
 
Melhor Filme, Diretor, Fotografia, Cenografia, Trilha Sonora,
Ator (Othon Bastos), Atriz (Dina Sfat) no VI Festival de Brasília
Prêmio Governador do Estado de São Paulo
de Melhor Atriz (Ítala Nandi)
Coruja de Ouro de Melhor Atriz (Ítala Nandi),
Ator Coadjuvante (Nelson Xavier) e Atriz Coadjuvante (Mara Rúbia)
Melhor Filme no V Prêmio Air France de Cinema
Melhor Filme, Direção e Fotografia
no Festival de Grenoble, França.
 
elenco e diretor no festival de berlim
FONTES
“Alegorias do Subdesenvolvimento: Cinema Novo,
Tropicalismo, Cinema Marginal”
(2012)
de Ismail Xavier
 
“História Ilustrada dos Filmes Brasileiros: 1929-1988”
(1989)
de Salvyano Cavalcanti de Paiva
 
“Revolução do Cinema Novo”
(2004)
de Glauber Rocha
 
“Ruy Guerra: Paixão Escancarada”
(2017)
de Vavy Pacheco Borges
 
“Os Sonhos não Envelhecem”
(1996)
de Márcio Borges

 

ASSISTA Os DEUSES e os MORTOS
https://www.youtube.com/watch?v=v52K0VNUBjU
 
norma bengell como soledade
CINEMA BRASILEIRO neste BLOG
 
01
ANATOMIA de uma AGONIA MILITANTE
 
02
CARMEN MIRANDA: VIVENDO de ALEGRIA
https://ofalcaomaltes.blogspot.com/2015/04/carmen-miranda-vivo-de-alegria.html
 
03
CINEMA BRASILEIRO: GRITOS e SILÊNCIOS
https://ofalcaomaltes.blogspot.com/2023/12/cinema-brasileiro-gritos-e-silencios.html
 
04
CONDENSANDO RITA ASSEMANY
https://ofalcaomaltes.blogspot.com/2024/05/condensando-rita-assemany.html
 
05
DINA SFAT, à FLOR da PELE
https://ofalcaomaltes.blogspot.com/2012/04/dina-sfat-estrela-flor-da-pele.html
 
06
FLORINDA: do CEARÁ para o MUNDO
https://ofalcaomaltes.blogspot.com/2016/10/florinda-do-ceara-para-o-mundo.html
 
07
GLAUBER ROCHA - os ÚLTIMOS DIAS de VIDA
https://ofalcaomaltes.blogspot.com/2011/03/glauber-rocha-os-ultimos-dias-de-vida_11.html
 
08
GLAUCE ROCHA: ILUMINANDO o CINEMA NOVO
https://ofalcaomaltes.blogspot.com/2015/01/glauce-rocha-iluminando-o-cinema-novo.html
 
09
GRANDE OTELO: COMÉDIA e TRAGÉDIA
https://ofalcaomaltes.blogspot.com/2016/01/grande-otelo-comedia-e-tragedia.html
 
10
 JORGE AMADO no CINEMA
https://ofalcaomaltes.blogspot.com/2017/01/jorge-amado-no-cinema.html
 
11
MARÍLIA – TALENTO a TODA PROVA
https://ofalcaomaltes.blogspot.com/2017/02/marilia-talento-toda-prova.html
 
12
MEMÓRIA BRASIL: NOSSO CINEMA
https://ofalcaomaltes.blogspot.com/2025/02/memoria-brasil-nosso-cinema.html
 
13
NORMA BENGELL: O OCASO de uma MUSA
https://ofalcaomaltes.blogspot.com/2012/10/norma-bengell-o-ocaso-de-uma-musa.html
 
14
PEQUENA HISTÓRIA do CINEMA BRASILEIRO
https://ofalcaomaltes.blogspot.com/2016/10/pequena-historia-do-cinema-brasileiro.html
 
15
REGIME MILITAR no BRASIL: FILMES
https://ofalcaomaltes.blogspot.com/2019/03/o-regime-militar-brasileiro-no-cinema.html
 
16
VERA CRUZ: AMBIÇÃO e DECLÍNIO
https://ofalcaomaltes.blogspot.com/2011/08/vera-cruz-ambicao-e-declinio.html
 
17
A VIDA e os FILMES da BELA TÔNIA CARRERO
https://ofalcaomaltes.blogspot.com/2025/02/vida-e-os-filmes-da-bela-tonia-carrero.html
 
18
20 GRANDES ATORES do CINEMA BRASILEIRO
https://ofalcaomaltes.blogspot.com/2025/01/20-grandes-atores-do-cinema-brasileiro.html
 
GALERIA de FOTOS