maio 25, 2024

********** O CINEMA ELEGANTE de MAX OPHÜLS

 

 


“Qual cineasta foi mais ignorado que Max Ophüls? Um ostracismo mesquinho e teimoso foi praticado em relação ao seu trabalho.”
CLAUDE BEYLIE
crítico e historiador de cinema
 
“Ele não era o virtuoso, o esteta ou o cineasta decorativo que tem sido chamado. Assim como seu amigo Jean Renoir, Ophüls sempre sacrificou a técnica pelo ator. Ele fez com que os atores fossem mais naturais do que a maioria dos diretores.”
FRANÇOIS TRUFFAUT
cineasta


O cinema sedutor, refinado e barroco do mestre MAX OPHÜLS (1902 – 1957. Saarbrücken / Alemanha) é pouco conhecido no Brasil. Ele foi um exímio narrador de histórias de amor, confirmando sua sensibilidade romântica, sua identificação com a consciência e os apuros das mulheres. Uma das suas características mais notáveis é a importância dada à identidade feminina. Destaco também os extraordinários e vivos jogos de câmera, os travellings absurdos acompanhando a narrativa e a peculiar elegância do diretor. Embora seu cinema também prospere com tramas envolventes, atuações fortes e um manejo hábil de múltiplos temas e concentrações históricas, hipnotiza principalmente pelo profundo fascínio visual. Há algo de mágico em sua obra, algo especial em seu estímulo emocional-sensorial.
 
Sua filmografia está repleta de uma arte de tirar o fôlego. A câmera gira e faz curvas captando cada faceta da decoração e do figurino. Tal como essas elaboradas manobras que enriquecem a sua trajetória cinematográfica, sua carreira foi de flutuações dinâmicas. Desde seu primeiro longa-metragem em 1932, até o último em 1955, teve momentos de tremenda produtividade, seguidos por adversidades desanimadoras. Ele definhou em períodos de estagnação, se levantando novamente e florescendo com uma série de sucessos sensíveis e aplaudidos.

max ophuls
Nascido Maximillian Oppenheimer, começou sua carreira no show business como ator teatral aos 17 anos, mudando seu sobrenome para não manchar o nome da família rica e tradicional. Em 1924, trabalhou como diretor no prestigioso Bürgtheater de Viena. Em 1926, casou-se com a atriz Hilde Wall, com quem teve Marcel, o futuro documentarista de “A Tristeza e a Piedade / Le Chagrin et la Pitié” (1969).  Em 1930, com cerca de duzentas peças no currículo, iniciou sua arte cinematográfica como assistente de Anatole Litvak na UFA, em Berlim.
 
Dirigiu seu primeiro filme em 1930, o curta-metragem “Prefiro ter Óleo de Fígado de Bacalhau / Dann Schon Lieber Lebertran”, considerado perdido, seguindo-se o longa-metragem, “A Companhia Apaixonada / Die Verliebte Firma” (1932). O sucesso veio com “Uma História de Amor / Liebelei”, em 1933. Nele, seu estilo sofisticado já se define na adaptação de Arthur Schnitzler, em quem mais tarde se inspiraria para criar um dos seus mais importantes filmes, “Conflitos de   Amor”, em 1950. A ascensão de Adolf Hitler ao poder na Alemanha obrigou o diretor judeu a abandonar o país e a instalar-se na França, onde, de 1934 a 1940, fez sete filmes, intercalados entre uma realização na Itália e outra na Holanda. Em 1938, adquiriu a cidadania francesa.
 
O avanço das tropas nazistas levou-o à Suíça, mas a falta de autorização de trabalho (que só lhe seria concedida caso se declarasse desertor do exército francês, o que ele recusou) resultou no fim do seu projeto de filmar a comédia “Escola de Mulheres”, de Molière, com Louis Jouvet, e na sua expulsão do país. Antes, em Zurique, dirigiu com sucesso duas peças. Em seguida, em 1941, mudou para os Estados Unidos. Os primeiros anos em Hollywood foram difíceis. Ele vivia graças à ajuda dos amigos refugiados. Desempregado até 1946, aproveitou para escrever sua autobiografia. Preston Sturges, impressionado com “Uma História de Amor”, conseguiu que dirigisse “Vendetta / Idem” para a RKO Radio Pictures. Porém a filmagem foi conturbada pelas interferências do produtor Howard Hughes. Uma discordância causou a demissão do diretor e de Sturges. Mel Ferrer terminou assinando o filme inexpressivo.
 
A oportunidade de MAX OPHÜLS sentar atrás das câmeras em Hollywood chegou com o auxílio do cineasta alemão Robert Siodmak, que sugeriu seu nome a Douglas Fairbanks. Jr. para “O Exilado” (1947), aventura histórica que o próprio astro produziu. Seguiram-se três outros filmes, todos com receitas medianas. Após “Na Teia do Destino”, seu último trabalho nos EUA, o produtor Walter Wanger decidiu confiar ao diretor a possibilidade de concretização de um dos seus sonhos mais desejados: a adaptação do famoso romance de Honoré de Balzac, “A Duquesa de Langeais”. Balzac era um dos escritores preferidos do cineasta e ele encarou o projeto com muito entusiasmo. A obra seria rodada em Paris, onde regressou em fins de 1949, após nove anos de ausência. Greta Garbo e James Mason seriam os protagonistas. Infelizmente, a ambiciosa adaptação não se concretizou por falta de dinheiro.

max ophuls e joan fontaine
Em 1950, reiniciou sua filmografia na França com o prestígio de ter sido descoberto pela nova crítica da revista “Cahiers du Cinéma”. Com uma carreira marcada por fracassos críticos e comerciais, por projetos iniciados e abandonados, mas também por conquistas renomadas, MAX OPHÜLS certamente conhecia a natureza precária do negócio do entretenimento. Seu último filme, o magnífico “Lola Montès”, uma coprodução internacional, foi recebido com hostilidade desenfreada. Sua linha do tempo inovadora levou a cortes e reorganizações narrativas, resultando em uma versão provisória de 91 minutos em ordem cronológica, retirando exatamente o que melhor caracterizava a originalidade da técnica empregada pelo diretor. De modo que ele só foi visto integralmente, como hoje conhecemos, muito mais tarde. Na época do lançamento, indignados, famosos diretores e críticos da França – entre eles, François Truffaut, Jean Cocteau, Roberto Rossellini e Jacques Tati – publicaram uma carta aberta em defesa das inovações e audácia do filme e elogiando seu diretor como um artista de vanguarda.
 
A mutilação da obra abalou MAX OPHÜLS que – afetado por problemas cardíacos – morreu em 1957, aos 54 anos. Suas cinzas estão no Père-Lachaise, em Paris. Ele trabalhava em “Os Amantes de Montparnasse/ Les Amants de Montparnasse” (1958), cinebiografia sobre o pintor italiano Amedeo Modigliani, que foi concluído por Jacques Becker. Seu último trabalho completo, a encenação em Hamburgo de “As Bodas de Fígaro”, no Schauspiel Theater, resultou num sucesso extraordinário. Na estreia, os intérpretes tiveram 46 chamadas ao palco.
 
FONTES
“Max Ophüls: Visão Magistral e a Figura da Mulher” (1995) de Susan M. White;

“Max Ophüls nos Estúdios de Hollywood” (1996) de Lutz Bacher;

“O Prazer de Ver Max Ophüls” (1991) de Klaus Vetter e Carlos Augusto Calil.

“desejos proibidos”

DEZ FILMES de MAX OPHÜLS
(por ordem de preferência)
 
01
DESEJOS PROIBIDOS
(Madame De..., 1953)

Elenco: Charles Boyer, Danielle Darrieux, Vittorio De Sica e Jean Debucourt
 
Baseado no romance de Louise de Vilmorin. Da frivolidade à tragédia amorosa, a trajetória de mulher superficial e, por fim, apaixonada, e suas relações com o marido e o amante. Clássico, oferece uma representação de amplo espectro de uma estrutura social. Começa como uma inteligente comédia, eleva-se às alturas de um romance, e resolve-se em tragédia. Um dos filmes que constituem a expressão mais alta do estilo do diretor. Combina os ingredientes típicos e interesses temáticos que ocuparam sua carreira, relacionando os sofisticados elementos cinematográficos numa complexa tensão dramática. Interpretação impecável do trio central, despontando Danielle Darrieux, que cria com inteligência uma personagem atraente e fútil.
 
02
CONFLITOS de AMOR
(La Ronde, 1950)

Elenco: Anton Walbrook, Simone Signoret, Serge Reggiani, Simone Simon, Daniel Gélin, Danielle Darrieux, Jean-Louis Barrault, Isa Miranda e Gérard Philipe
 
Adaptação livre da peça de Arthur Schnitzler, composta de dez episódios entrelaçados por um narrador, que oferece uma visão satírica e, às vezes, amarga, da libertinagem. Construído sobre uma série de situações em torno de amantes cuja única ou principal relação é a sexual, foi o maior sucesso do diretor, largamente reprimido e até mesmo censurado em certos países, por sua apresentação do erotismo. Representou, à sua época, o compêndio do espirituoso, do sofisticado e do elegante. Com ele, MAX OPHÜLS voltou à sua pátria adotiva, a França. Depois de nove anos de exílio nos EUA, marcou a abertura da última e mais bela fase da errante carreira do diretor.
 
03
O PRAZER
(Le Plaisir, 1952)

Elenco: Claude Dauphin, Gaby Morlay, Madeleine Renaud, Danielle Darrieux, Pierre Brasseur, Jean Gabin, Jean Servais, Daniel Gélin, Simone Simon e Paulette Dubost
 
Baseado em contos de Guy de Maupassant, trata do prazer sensual através de refinadas relações e sutis reflexões em torno de episódios envolvendo um estranho mascarado, o comportamento inusitado de profissionais de um bordel e a modelo de um pintor. Segundo Jean-Luc Godard, “o mais ophulsiano dos filmes do diretor”.
 
04
LOLA MONTÈS
(Idem, 1955)

Elenco: Martine Carol, Peter Ustinov, Anton Walbrook, Lise Delamare, Paulette Dubost, Oskar Werner e Ivan Desny
 
A vida e amores de notória aventureira, cortesã e dançarina de cabaré, que acabou contratada por um circo para um espetáculo baseado em sua biografia. O filme trabalha o tema da aniquilação pessoal face aos cruéis e imorais artifícios da indústria do escândalo, sob a forma de uma condenação vigorosa do mundo decadente retratado de maneira luxuosa. Desde sua estreia, criou grande controvérsia. Depois de lançado em versão mutilada, criou-se uma aura ao seu redor. Com novas abordagens, tem o substrato fundamental para o desenvolvimento do cinema moderno. Em 1968 foi relançado numa versão integral de 140 minutos.
 
05
CARTA de uma DESCONHECIDA
(Letter from an Unknown Woman, 1948)

Elenco: Joan Fontaine, Louis Jourdan e Mady Christians
 
Comovente e melancólica história poeticamente fotografada por Franz Planer. Na Viena do começo do século XX, a narração em flashback a partir do drama de um pianista de concerto, transformado em playboy, que recebe carta de uma mulher morta relatando a breve relação entre eles. O filme arma o contraste entre a leitura (do homem), que desconhece os motivos e as intenções, e a consciência (da câmera e da mulher) que domina e manipula a ação. Um melodrama exemplar. Irrepreensível nos aspectos técnicos e perfeito do começo até o seu inesquecível final.
 
06
WERTHER
(Le Roman de Werther, 1938)

Elenco: Pierre Richard-Willm, Annie Vernay e Jean Galland
 
Inspirado no clássico romance de Goethe, apresenta os sofrimentos de jovem, que, apaixonado por uma mulher comprometida, não consegue conter a idealização de seu amor, tornando-se obcecado pela ideia do suicídio. Um drama sensível e bem interpretado. Os aspectos mais marcantes são a cinematografia e a direção. Há um uso de iluminação muito interessante, com focos de luz chamando a atenção para partes específicas do cenário e as emoções dos personagens.
 
07
O EXILADO
(The Exile, 1947)

Elenco: Douglas Fairbanks Jr., Maria Montez, Henry Daniell e Nigel Bruce
 
Alegre fantasia sobre as aventuras do Rei Charles Stuart na Holanda. O diretor aproveita a oportunidade para mostrar a Hollywood o que ele sabia fazer com a câmera. A força do filme vem de suas composições, da intricada mise-en-scène, do movimento permanente e do carisma de Fairbanks Jr., que homenageia seu pai.
 
08                                                                
Na TEIA do DESTINO
(The Reckless Moment, 1949)

Elenco: James Mason, Joan Bennett, Geraldine Brooks e Shepperd Strudwick
 
Um drama como paródia crítica dos valores tradicionais da classe média. Último filme de MAX OPHÜLS nos EUA e, tal como “Coração Prisioneiro” (que o antecedeu) na sua gênese interveio o ator britânico James Mason, um dos maiores amigos do diretor. Produzido por Walter Wanger, marido de Joan Bennett e um dos mais cultos produtores de Hollywood, se situa num meio social abastado, com Bennett (magnificamente dirigida) chantageada por cafajeste que apaixona-se por ela.
 
09
CORAÇÃO PRISIONEIRO
(Caught, 1949)

Elenco: James Mason, Barbara Bel Geddes, Robert Ryan e Curt Bois
 
Insatisfeita com seu marido sádico e milionário, garota vai trabalhar com um médico. Eles se apaixonam. Grávida, ela pede o divórcio, mas o marido exige em troca a custódia da criança. O filme fornece uma clara demonstração das possibilidades críticas inerentes ao melodrama. O diretor mostra-se inteiramente à vontade nas convenções do filme noir, dominante em Hollywood na época.
 
10
SEM PERDÃO
(Sans Lendemain, 1939)

Elenco: Edwige Feuillère, Jorge Rigaud e Daniel Lecourtois
 
Artista de cabaré, com um pequeno filho, reencontra um antigo amor, mas está envolvida amorosamente com um rico mafioso. Ela se vê forçada a situações comprometedoras, até que surge uma saída desesperada. Pode ser visto como um ensaio para “Carta de Uma Desconhecida”. No elenco, brilha Edwige Feuillère.
 
GALERIA de FOTOS
 

lola montèz

maio 05, 2024

***************** CONDENSANDO RITA ASSEMANY

 

ANTONIO NAHUD entrevista RITA ASSEMANY
 
São 43 anos em cena. Conhecida por um vasto repertório de espetáculos que lotaram teatros, em 1997 trabalhou com o diretor alemão Hans Ulrich Becker no papel-título de “Medeia”, tragédia grega de Eurípedes. A carismática e iluminada atriz baiana RITA ASSEMANY (1962. Salvador / Bahia) também atuou em diversos filmes, ganhando em 2000 o prêmio de Melhor Atriz nos festivais de cinema de Brasília, Curitiba e João Pessoa por sua atuação no curta-metragem “Pixaim”.
 
Acompanho sua trajetória desde muito jovem. Vi boa parte de suas peças e filmes. Sempre admirável. Lembra-me Rosalind Russell e Shirley MacLaine, estrelas que se equilibravam perfeitamente na comédia e no drama, nos palcos e nas telas. Dia 11 de maio ela estreia o recital satírico “Chiquita com Dendê”, escrito por Aninha Franco, no Teatro Molière da Aliança Francesa, em Salvador (BA), e ainda este ano vai estar na HBO MAX com a série “Máscaras de Oxigênio (não) Cairão Automaticamente”.
 
Confira abaixo sua arte e sua sensibilidade. Boa leitura.
 
01
Como tudo começou, ou seja, quando o teatro começou a fazer parte de sua vida?
 
Acho que minha primeira inspiração veio de meu pai. Ele participou de um grupo de teatro amador, ainda quando jovem, e era um pai que cantava, tocava clarineta, escrevia quadrinhas e interpretava personagens nas festas de São João. Meu pai nos levou, a mim e minhas irmãs, para assistir “Brasileiro: Profissão Esperança” no Canecão, quando eu tinha onze anos; e neste mesmo ano, me levou na Concha Acústica para assistir ao show - mais teatral impossível - de “Secos e Molhados”. E já no final dos anos 70, vi “Macunaíma”, de Antunes Filho; foi ali que pensei: eu preciso achar um caminho para fazer isso aí, teatro. E o caminho veio enquanto eu fazia magistério no Colégio Sacramentinas. Lá conheci Anita Bueno e Ricardo Ottoni, que já faziam teatro, e que me convidaram para participar do elenco de um espetáculo infantil, “A Fuga das Notas Musicais”. Não teve volta. 
 
02
Você teve um mestre, um professor. Caso sim, gostaria que detalhasse um pouco desses ensinamentos. Que dicas, que práticas ele lhe passou que considera importante que os artistas da cena saibam hoje?
 
Eu tive muitos mestres. Harildo Déda foi um deles, que me discipulou, com o mplo, no amor e na devoção pela profissão. Carmem Paternostro é outra, que me ensinou a brincar e descobrir uma “cartela de cores” para as palavras. Fernando Guerreiro, da maior importância! Ele fez possível sobreviver de teatro na Bahia fazendo humor de qualidade. Lia Mara, Elisa Mendes, Paulo Dourado, e tantos outros contribuíram para a minha construção e compreensão do ofício de atuar.
 
03
Pode contar alguma lembrança representativa de sua trajetória como atriz?
 
Acredito que o meu encontro com Aninha Franco foi determinante para minha carreira teatral. Criamos juntas uma dramaturgia baiana, forte, na escrita e nas encenações; e fizemos coisas lindas e importantes para esta cidade. As pessoas me dizem isso. Ficamos registradas no imaginário delas.
 
04
Qual a importância de fazer teatro no contexto cultural atual, onde a arte está cada vez mais desvalorizada intelectualmente e abraça o superficial?
 
É verdade, vivemos um momento bem “descartável”, em todos os âmbitos. Justamente por disso, o teatro se torna ainda mais necessário e mágico. As salas de teatro no Rio e em São Paulo estão cheias novamente. Vivas! Sempre vão existir pessoas em busca desse lugar de reflexão e poesia. Sempre. Em busca desse encontro olho no olho; desse jogo de ilusão que se firma entre o ator e o espectador. As emoções no teatro são profundas e todo ser humano, conscientemente ou não, busca isso.  Quando você vai ao teatro, sabe que participará de algo único, irrepetível: nada mais será como aquele dia. Os celulares devem estar desligados, as pessoas silenciosas exercitando a escuta, algo aparentemente tão simples, mas tão raro nos dias atuais. Num Brasil dividido, em uma plateia de teatro deve caber todo mundo. Sem briga, sem confusão. Já pensou se no teatro tivéssemos que viver como tem acontecido no futebol, com a torcida única? Que tristeza! O teatro é um espaço intenso, questionador, mas invariavelmente livre! Aguerrido de guerras internas. O lugar de se pensar questões humanas, e sociais.
 
05
“Oficina Condensada” ficou muitos anos em cartaz. Eu mesmo vi várias vezes. Como posiciona esse espetáculo na sua história artística?
  
Foi um divisor de águas na minha vida. Até hoje, encontro pessoas na rua que me perguntam quando Professora Ivone vai voltar. Taí um modelo de espetáculo de humor rasgado, em que várias questões sérias e caras à nossa sociedade eram abordadas: o projeto de deseducação, o machismo, a misoginia, o feminismo… Era um momento feliz para o teatro baiano. Os espetáculos lotavam as casas! Às duas horas da tarde o público já estava na bilheteria para garantir seus ingressos de logo mais… “Oficina Condensada” me deu minha casa. E me abriu portas para outros trabalhos, inclusive no cinema. Pude conhecer outras plateias Brasil afora e recebi críticas fantásticas. Naquele momento, existiam jornalistas especializados em Crítica Teatral; e quando algum deles - fosse do jornal “O Globo”, “Jornal do Brasil” ou a “Folha de São Paulo” - escreviam sobre nosso espetáculo - bem ou mal - confirmava-se o sucesso da peça. É quase inacreditável imaginar que hoje os espetáculos ficam apenas um dia por semana em cartaz. Precisamos reverter isso!
 
06
“Toda Nudez Será Castigada”, “O Balcão”, “Decamerão”, “A Casa da Minha Alma” etc. Qual o seu melhor momento nos palcos?
 
“Dendê e Dengo”, “Medeia”, “Esse Glauber”, “Três Mulheres e Aparecida”, “Oficina Condensada”... cada espetáculo demarca seu lugar próprio na minha história e na minha memória. Os espetáculos que dirigi: “Todas as Horas do Fim”, com Nadja Turenko; “A Comida de Nzinga” e “Milagre na Baía”, com a Cia. Axé do XVIII; “Voz”, com Carlos Betão. Todos esses também foram processos muito especiais, da minha atuação em outra posição do jogo cênico. O Theatro XVIII era muito fértil, e sem dúvida vivi nele um momento ímpar do meu trabalho criativo. Mas depois dele, tive a experiência da Sala Ita na República AF, totalmente diferente do XVIII, onde encenei os espetáculos “Surf no Caos” e “Chiquita com Dendê” para uma plateia de 20 pessoas a cada sessão. Outra força, outro tipo de encontro com o público! Outra onda! E mais um momento singular, outra oportunidade incrível para o meu exercício da criação. O meu melhor momento no palco é quando estou em cima dele.
 
07
E a sua relação com o Theatro XVIII, no Pelourinho? Qual é a importância dele, tanto para sua trajetória profissional como para o cenário artístico de Salvador?
 
Pra minha trajetória profissional, a importância que eu disse acima, o XVIII era um lugar de efervescência e pujança criativas. Para a cidade, acho que o texto de Aninha Franco dito por Maria Bethânia (gravado em áudio) antes de todas as apresentações do teatro responde tudo:
 
“Eu conheço um lugar
Onde pretos e brancos
Ricos e pobres
Comunistas e capitalistas
Eruditos e populares
Dividem o mesmo espaço:
Todos porque podem
Todos porque desejam.”

 
Mas explico: no Theatro XVIII, os artistas não pagavam pauta, nem técnicos, nem divulgação. E a bilheteria dos espetáculos era, ainda, integralmente entregues aos respectivos artistas. Com exceção dos artistas da casa, que já eram patrocinados. No Theatro XVIII, tínhamos programação teatral 6 dias por semana com plateias lotadas, que faziam fila ladeira acima ou abaixo, na (rua) Frei Vicente (Pelourinho). Plateias formadas por pessoas de todos os bairros da cidade, das periferias e das regiões “nobres”. Era um teatro frequentado cotidianamente. No Theatro XVIII, crianças e adolescentes estudavam, brincavam e aprendiam. O teatro era um complexo; que além da sala de espetáculos, tinha a casa de ensaios e os espaços para aulas e oficinas. O “Anexo do XVIII” recebia a infância e a juventude do Centro Histórico em peso, para aulas gratuitas de música e literatura com as professoras Rita Teixeira e Mabel Veloso. Recebemos, inclusive, os jovens egressos do Projeto Axé, com os quais foi criada a Cia. Axé do XVIII. E testemunhamos esses jovens se transformarem através da arte. Hoje, alguns deles são professores de teatro e dança formados pela UFBA. A propósito, no Theatro XVIII, às segundas-feiras, aconteciam os saraus. Os Saraus Literários, os Saraus Instrumentais, as Aulas Abertas… das coisas mais bonitas e preciosas daquele lugar: Professores, intelectuais, artistas e a comunidade se encontravam para trocar seus conhecimentos, sobre os problemas do nosso tempo e a cidade. Sobre tudo. Então, o que foi o Theatro XVIII para a cidade? Sabe-o a Cidade que o viveu. O que ele É? Para todos, um modelo criativo socioeducativo de excelência. Mas só assim o reconhece quem compreende Cultura e Educação como política pública de Estado e não de Governo. Cultural partidária não entende que projetos com essa relevância para a cidade, não podem ficar à mercê das mudanças de governos. Ainda hoje, sem o XVIII, existe um buraco na cidade e no meu coração.
 
08
Conte a experiência ideal na concepção e na realização de um espetáculo?
 
Ah, é muita coisa, não conseguiria escrever aqui. Vou tentar resumir: primeiro a ideia. Falar sobre o quê? Escolher um texto já finalizado ou começar do zero com o dramaturgo, e isso é um luxo!  Depois cair na real. Tem patrocínio? Como vamos levantar essa produção? Se tiver patrocínio, sonhar. Escolher a equipe com os melhores: produtor executivo, diretor, diretor musical e seus assistentes,  preparador vocal, músicos, figurinista, cenógrafo, coreógrafo, fotógrafo, maquiador, costureiras, cenotécnico, divulgador… e por aí vai. Com o texto em mãos, as primeiras leituras. Muitos dias de trabalho de mesa. Estudo dos personagens e definição da encenação. Só depois disso, os primeiros ensaios. Em média dois meses e meio de trabalho diário e finalmente a estreia. A experiência ideal que eu tive, foi o Theatro XVIII. Suporte físico (salas de ensaio e apresentações) e financeiro (patrocínio através de leis de incentivo) possibilitando realizar com esmero o que foi planejado artisticamente. Por fim, possibilitar à todas as pessoas a possibilidade de acesso à cultura através de ingressos realmente democráticos.
 
09
Qual é a importância de contribuir para jogar luz na arte baiana?
 
Olha, estamos todos fazendo um esforço hercúleo para trazer o teatro baiano para o lugar onde ele esteve um dia. Precisamos da parceria dos espectadores que sempre foram o nosso maior apoiador. Precisamos também, urgentemente, que os empresários voltem os olhos para nós, artistas de teatro. Patrocinar os mega artistas é fundamental, mas colocar sua marca em artistas independentes, com suas produções artesanais é chiquérrimo e traz prestígio e respeito para a empresa. Empresários que pensam grande pensam nos pequenos e fazem eles crescerem.  A Bahia é um luxo com tanta riqueza cultural. Deveríamos estar em primeiro lugar no turismo, na educação, no emprego, nas artes. Acabamos de ter uma bienal do livro aqui. Ótimo! Mas teve apagão e também muitas pessoas foram roubadas lá dentro.  A gente precisa pensar sobre isso tudo e tentar resolver. Acho que nós temos muitos artistas importantes e conscientes jogando luz nesse breu o tempo todo. Mas precisamos de apoio governamental, empresarial, da imprensa e do público. Precisamos ocupar a cidade com o que existe de melhor.
 
10
Você é uma atriz famosa na Bahia, mas parece que coloca o seu empenho no teatro muito à frente de toda essa névoa da fama.
 
Sabe o que é ser famoso pra mim? É entrar num Uber e o motorista olhar pra minha cara e começar a chorar de saudade do Theatro XVIII. É andar no Pelourinho e ouvir dos pais das crianças com as quais trabalhei, gritar: professora, quanto tempo! É saber que faz seu trabalho com verdadeiro amor e responsabilidade. É ter o grande ator Elias Andreato depois de uma apresentação de “Surf no Caos” nos meus braços aos prantos de emoção. É reconhecer pessoas na plateia que te acompanham há décadas. Eu não sei me vender. Então sou uma artista que trabalha para pagar as contas. Meses ótimos, outros um aperto só. Sabe aquela história da música “Bahia minha Preta”, que diz: “...vender o talento e saber cobrar, lucrar/ insiste no que é lindo e o mundo verá / tu voltares lindo ao lugar que é teu no globo azul…”
 
11
Essa coisa da fama pode ser prejudicial para um artista?
 
Olha, sei não. Não conheço essa fama que você está falando. Acho que vai depender do caráter e do equilibro emocional da pessoa. Ser reconhecido é sempre bom.
 
12
Como descreveria o seu jeito, a sua personalidade?
 
Tímida espalhafatosa.
 
13
Elementos pessoais são ressaltados em seus personagens?
 
A gente acaba misturando tudo. Emprestando nossas experiências para os personagens e aprendendo com eles. Não sei se da minha personalidade, mas da minha história de vida. Tudo que observei, senti, amei, odiei, estudei. Fica aquele arquivo ali guardado e você vai usando as fichas que precisa para cada personagem, para cada estória que precisa ser contada.
 
 
14
Como é sua relação com o envelhecimento?
 
Tranquilíssima. Às vezes digo: PQP, tô velha demais! Mas não sofro com isso. O estranho é a alma e a energia cheias de vontades e corpo dizendo, calma Beth!
 
15
Qual foi a lição mais importante na sua carreira?
 
Atuar é trabalho de equipe, sempre! Mesmo num monólogo.
 
16
E o que faz uma boa atriz ou ator?
 
Ah, talvez a honestidade nos seus propósitos. O trabalho incessante, porque um personagem de teatro nunca está pronto. E talento, sem ele, nada feito!
 
17
Como avalia os assuntos que o teatro tem levado aos palcos nos últimos tempos?
 
Etarismo, feminismo, racismo, as relações familiares, a corrupção, as questões políticas e sociais, …. enfim, são muitos e diversos temas propostos para o debate. Esse definitivamente não é nosso problema.
 
18
Quais as características que acredita ser essencial e como encara os desafios da profissão nos dias de hoje, já que o público também mudou com o avanço das tecnologias que trazem outros meios de diversão para o telespectador?
 
Olha, se o espetáculo é bom, o público vai. Pode chegar aos pouquinhos, mas em algum momento o espetáculo ganha estrada. Como já disse, a produção teatral aqui está tímida, já estava antes da pandemia, com ela, piorou tudo. O rádio, o cinema, a tv… nada disso acabou com o Teatro. Agora é mais complicado, é! Lembro que a Tv Bahia tinha um espaço chamado “Janela para o Teatro” onde divulgava nossos espetáculos. Lembro que os seminários e congressos nacionais e internacionais que aconteciam aqui na Bahia, faziam questão de contratar nossos espetáculos, apresentando nosso trabalho para pessoas de outros lugares. Valorizando nossos Artistas. Precisamos recuperar tudo isso. Estou voltando com um espetáculo no Teatro Moliére. Um recital lindo, “Chiquita com Dendê”, sobre a Bahia. Está sendo fácil? Não. Mas estou tão feliz de conseguir estar de novo num palco, que todo esforço é válido. Se lotar, vou ficar muito feliz. Se não lotar, vou fazer minhas apresentações com o mesmo tesão, amor e responsabilidade de sempre. Quem for assistir vai saber e sentir isso. E sei que vai gostar também, porque não entrego nada feito de qualquer forma. Tudo é pensado carinhosamente para o espectador receber o melhor da gente. Passo horas e horas ensaiando pensado nele, no espectador.
 
aninha franco, assemany e fernando guerreiro
19
Qual foi a sua experiência mais transformadora no teatro?
 
Transformadora em que sentido? Olha, eu fiz uma cordeira no espetáculo “Esse Glauber”. Um dia fizemos um encontro com donos de bloco e o sindicato dos cordeiros. Queriam me contratar.
 
20
Você tem uma atriz favorita? Qual foi a mais significativa montagem teatral que viu em sua vida?
 
Amo Ingrid Bergman, Sofia Loren, Bette Davis, Marília Pera. Amo Marjorie Estiano, Laura Cardoso, as Fernandas… Amo e me inspiro em muitas atrizes. E o espetáculo, acho mesmo que foi “Macunaíma”, com Cacá Carvalho.
 
21
Você faz teatro há mais de 40 anos. O que ele te proporciona?
 
O maior prazer da minha existência.
 
22
Após esse período se dedicando à arte cênica, o que te move a continuar vivendo outras vidas e o que os anos na profissão trazem de frescor para o ator?
 
Estou apenas começando, Antonio. Cada nova proposta, um novo desafio. Tenho muito o que aprender. Espero encontrar parceiros delicados que me ofereçam instrumentos para continuar crescendo. Eu sei do que sou ainda capaz de fazer.
 
23
Fazer cinema, TV e teatro são artes diferentes. O cinema é mais curto e rápido, o teatro é mais artesanal e a TV tem todo um processo para acompanhar a saga da personagem. Em qual deles se sente mais realizada profissionalmente?
 
Teatro, porque é o lugar onde me sinto confortável. Então, quero muito ter novas e variadas experiências na tv e cinema para um dia me sentir assim como no teatro, confortável. E daqui há alguns anos quando você me fizer essa pergunta novamente, eu possa te responder: me sinto igualmente realizada fazendo teatro, tv e cinema. Esse é o meu propósito atual. 
 
24
Vi vários de seus filmes. “Abril Despedaçado” é um dos melhores filmes do cinema brasileiro. Como traduziria Walter Salles?
 
Um homem culto que pensa o Brasil.
 
25
Comente sobre sua participação em “Eu Me Lembro” e “Pau Brasil”.
 
Duas participações pequenas em dois filmes baianos lindos. Aliás, tenho tido sorte. Sou chamada sempre para bons projetos!
 
26
“Depois do Universo”, filme nacional da Netflix, ficou por meses no ranking dos mais assistidos da plataforma. Como foi sua participação?
 
Adoro minha personagem. Tive uma resposta positiva imensa do público. Raimunda é humaníssima. O filme é bem feito, o público jovem ama. Gostei do resultado.
 
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Concluiu a segunda temporada da série “Justiça”. O que tem a dizer sobre o projeto?
 
Uma honra participar de “Justiça 2”. As gravações terminaram em julho de 2023. A dramaturgia de Manuela Dias é incrível e o elenco extraordinário. Faço Ingrid, uma mulher amarga, infeliz, completamente dependente financeiramente do irmão. Uma tia rodriguiana? Quase lá. Amei fazer Ingrid. Das cenas que gravei, tenho três muito interessantes. Uma já foi ao ar, eu e Alice Wergman, amei! Fico torcendo aqui para que não tenham cortado as outras, porque audiovisual tem disso, muitas vezes cenas são cortadas para o bem geral da obra.
 

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Tem alguma coisa que gostaria de acrescentar?
 
Finalizei este ano, em fevereiro, “Máscaras de Oxigênio (não) Cairão Automaticamente”, com direção de Marcelo Gomes e Carol Minem. Muito bom trabalhar com eles.  A série vai estrar na HBO MAX, ainda esse ano.
 
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Obrigado pela entrevista. Seu talento é um orgulho para a nossa Bahia.
 

TODOS os FILMES e SÉRIES de RITA ASSEMANY
 
Código de Hamurabi (1990) CM
direção: Mônica Simões
 
Héteros, a Comédia (1994) CM
direção: Fernando Beléns
 
Central do Brasil (1998)
direção: Walter Salles
 
Pixaim (2000) CM
direção: Fernando Beléns
 
Abril Despedaçado (2001)     
direção: Walter Salles
 
3 Histórias da Bahia (2001)
direção: José Araripe Jr., Edyala Iglesias e Sergio Machado
 
Eu Me Lembro (2005)
direção: Edgard Navarro
 
Pau Brasil (2014)
direção: Fernando Beléns
 
O Último Cine Drive-in (2014)
direção: Iberê Carvalho
           
Dona Flor e Seus Dois Maridos (2017)
direção: Pedro Vasconcelos
 
Entre Irmãs (2017)
direção: Breno Silveira
           
Depois do Universo (2022)
direção: Diego Freitas
 
Ode (2023) CM
direção: Diego Lisboa
 
Justiça 2 - Temporada 1 (2024)
direção: Mariana Betti, Gustavo Fernandes, Ricardo França e Pedro Peregrino
 
Máscaras de Oxigênio (não) Cairão Automaticamente (2024)
direção: Marcelo Gomes e Carol Minem
 

antonio nahud e rita assemany