mark hamill e lee marvin em “agonia e glória” |
Diretor de longas B, sem nunca cair nos estereótipos do thriller ou do gênero melô, a restrição financeira que afetava a produção dos seus filmes não o impediu de rodar títulos com qualidade. Admirado pela trupe de jovens críticos da revista “Cahiers du Cinema”, encabeçado por François Truffaut e Jean-Luc Godard, que o trataram como um autêntico “auteur”, por seus poderosos golpes nos sentimentos humanos, é considerado um existencialista.
samuel fuller |
Ex-jornalista policial de Nova York, vagabundo que saltava de trens de carga, escritor de “pulp fiction” e soldado da Segunda Guerra Mundial, sua cáustica visão geralmente apresenta personagens amorais lutando para sobreviver no hospício da vida. Guerra e criminalidades são temas centrais em sua filmografia, com sua hiperativa câmara vasculhando os submundos e revelando os becos mais sórdidos das grandes cidades, onde cada figura é submetida a um violento rito de passagem em que certezas morais estabelecidas são testadas ao máximo.
O amor destrutivo entre os personagens é uma constante na sua obra. A consolidação ordenada e harmoniosa de uma comunhão romântica inexiste nesse universo. Apesar de se esquivar de rótulos, o seu cinema flerta diretamente com o gênero “noir”, cujo surgimento aconteceu em 1941, com O FALCÃO MALTÊS / The Maltese Falcon, de John Huston. Ao menos cinco filmes do diretor podem ser assim classificados: “Anjo do Mal”, “A Casa de Bambu / House of Bamboo” (1955), “O Quimono Escarlate / The Crimson Kimono” (1959), “A Lei dos Marginais / Underworld U.S.A.” (1961) e “O Beijo Amargo”.
james dean em "baionetas caladas" |
Num filme de SAM FULLER, a ação é sempre repentina, sem motivação profunda ou explicação detalhada. Ele expressou a violência e o caos do mundo em dezenas de policiais, westerns, dramas e filmes de guerra. A maioria com orçamento baixo e rejeitados pelos críticos de sua época, que o consideravam “primitivo e bárbaro”, mas redimidos através dos anos pela crescente admiração dos cinéfilos e cineastas (Robert Bresson e Claude Chabrol, por exemplo) em todo o mundo. Começou no cinema escrevendo roteiros para produções baratas nos anos 30.
Teve a sua primeira chance de dirigir em 1949, agarrando-a com unhas e dentes. Simples e impactante, “Eu Matei Jesse James” já revela a garra do diretor. Em 1952, o poderoso produtor Darryl F. Zanuck, da Fox, convidou-o para uma produção “classe A”, ou seja, de orçamento polpudo e atores famosos como protagonistas. Sombrio e sem heroísmo, o bonito “Anjo do Mal” não fez sucesso de bilheteria. Ele continuou filmando, numa persistência louvável, mostrando honestamente uma América do Norte não-oficial, de rejeitados, desconstruindo a noção de herói e vilão que dominava o cinema clássico.
Ensaiando uma ou duas vezes e filmando, SAMUEL FULLER não voltava a repetir a tomada. Fez um filme em 10 dias, com um único cenário e sem externas. Seus protagonistas são homens duros, simples, e, portanto, de confiança, em histórias de um dramatismo exacerbado, pontuadas por uma fotografia diferenciada e por momentos de absoluta e estranha beleza. Repudiado por colaborar com a política de caça aos comunistas liderada pelo senador republicano Joseph McCarthy, pouco a pouco foi sendo deixado de lado em Hollywood, instalando-se na França onde promoveu diversos workshops. Durante um deles, conheceu Wim Wenders, que o convenceu a participar como ator em “O Amigo Americano / Der Amerikanische Freund” (1977) e “Hammett / Idem” (1982). Teve também participação especial em “O Demônio das Onze Horas / Pierre Le Fou” (1965), de Jean-Luc Godard. Morreu em 1997, aos 86 anos, deixando na memória coletiva a imagem provocativa do seu gigantesco charuto e estilo contundente.
gene evans em “capacete de aço” |
Pouco se viu e muito se falou sobre os filmes de SAMUEL FULLER. Sua filmografia sobreviveu como seus personagens, renegada por muito tempo à margem do cinema. Dirigiu um total de 22 filmes para cinema e outros projetos para televisão. O seu último trabalho foi o telefilme “Le Jour du Chatiment” (1990). É um daqueles realizadores de segunda linha que nunca chegou verdadeiramente ao topo. Quase todos os seus filmes foram insucessos. “Cão Branco / White Dog” (1982), um dos últimos, nem sequer foi exibido comercialmente nos Estados Unidos, forçando-o a roubar as bobinas e fugir para o México, com medo que fosse permanentemente destruído. À sua maneira deixou um legado recheado de personagens cujo vigor de sobrevivência a qualquer custo incomoda os observadores mais antiquados.
FONTES:
“Il était une fois… Samuel Fuller”, Cahiers du Cinéma, 1986; e “1000 Que Fizeram 100 Anos de Cinema”, Isto é/The Times)
NOVE FILMES de SAM FULLER
EU MATEI JESSE JAMES
(I Shot Jesse James, 1949)
Com Preston Foster, Barbara Britton e John Ireland
Seu Jesse não é o Robin Hood da lenda cinematográfica, muito pelo contrário. E Robert Ford, o assassino, é retratado com simpatia. A relação suspeita deles é algo pouco visto em faroestes (como também em “O Proscrito / The Outlaw”, 1943; “Rio Vermelho / Red River”, 1948; “Johnny Guitar / Idem”, 1954; “Um De Nós Morrerá / The Left Handed Gun”, 1958; “Minha Vontade é a Lei / Warlock”, 1959; etc.): um sub tom homoerótico razoavelmente óbvio. Há algo de feminino nas preocupações de Jesse James (Reed Hadley). Algo provocante e sedutor. Ford (John Ireland) não consegue tirar os olhos dele. Estreia arrasadora, em tese é um faroeste, mas o diretor rompe os mitos que cercam os gêneros.
CAPACETE de AÇO
(The Steel Helmet, 1951)
Com Gene Evans e Robert Hutton
O primeiro título a trazer algum reconhecimento para o diretor, despe mitos, representando a diversidade étnica norte-americana e os bastidores de uma guerra cruel. Não é um filme sobre heroísmo, mas sobre a luta pela sobrevivência, sem mistificações. Sam se orgulhava de ter feito o primeiro filme sobre a Guerra da Coréia, enquanto ela acontecia.
BAIONETAS CALADAS
(Fixed Bayonets!, 1951)
Com Richard Basehart e Gene Evans
O mesmo cenário do drama de guerra anterior, a Coréia, e o mesmo ator, um dos favoritos do diretor: Gene Evans. Ele faz o duro sem ilusões num destacamento designado para uma batalha de retaguarda quase suicida. Todos os soldados são sujeitos comuns, nada heroicos. Ponta de James Dean como o soldado Doggie.
ANJO do MAL
(Pickup on South Street, 1953)
Com Richard Widmark, Jean Peters e Thelma Ritter
Primeiro grande filme de estúdio do diretor, protagonizado por Richard Widmark como um larápio que furta uma carteira que contém um microfilme valioso. Foi galardoado com o Leão de Bronze do Festival de Veneza. Noir clássico, fora de época, uma de suas características incomuns é a personalidade criminosa do protagonista. A femme fatale é uma prostituta que trabalha para os dissidentes comunistas. A polícia local utiliza métodos pouco ortodoxos para identificar o carteirista. Tudo isso numa Nova Iorque miserável e violenta, envolta num mundo negro de melancolia. Talvez a maior atuação de Ritter, que concorreu ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante.
RENEGANDO o MEU SANGUE
(Run of the Arrow, 1957)
Com Rod Steiger, Sarita Montiel e Ralph Meeker
Um soldado sulista confederado (excelente atuação de Rod Steiger, do Actor’s Studio) se refugia na terra dos índios Sioux após o fim da Guerra Civil nos EUA. História de perseverança, cenários épicos e defesa aberta à causa indígena. Charles Bronson, em início de carreira, faz um indígena.
DRAGÕES da VIOLÊNCIA
(Forty Guns, 1957)
Com Barbara Stanwyck, Barry Sullivan e Dean Jagger
Um dos faroestes mais audaciosos de todos os tempos. A super star Barbara Stanwyck, numa interpretação marcante, faz a baronesa do gado Jessica Drummond. Sem escrúpulos, ela luta pelo controle dos pastos no Arizona, estalando o seu chicote e escoltada por 40 soldados mercenários. Faz de tudo para proteger seu irmão desordeiro. Quando um novo delegado chega à cidade para colocar tudo em ordem, ela se apaixona pelo homem da justiça.
PAIXÕES que ALUCINAM
(Shock Corridor, 1963)
Com Peter Breck, Constance Towers e Gene Evans
Intensidade, força e fúria na história de um jornalista que se infiltra em um hospício passando-se por louco para descobrir o autor de um assassinato, e de quebra, ganhar o Prêmio Pullitzer.
O BEIJO AMARGO
(The Naked Kiss, 1964)
Com Constance Towers e Anthony Eisley
Uma das obras fundamentais do diretor. Disfarçado na redenção de uma prostituta que tenta ser aceita na sociedade hipócrita, trata de um outro assunto, muito mais aterrador, a pedofilia. E a forma como nos é mostrado, uma revelação horrível antecedida de uma cena de uma beleza ímpar, é marcante. Os fracos resultados de bilheteira levaram o diretor a trabalhar em televisão.
AGONIA e GLÓRIA
(The Big Red One, 1980)
Com Lee Marvin, Mark Hamill e Stéphane Audran
Após dez anos sem filmar, Sam retornou à ativa ajudado pelo amigo e fã incondicional Peter Bogdanovich, que capitaneou fundos para esse ambicioso projeto, um drama anti-guerra com Lee Marvin numa sensacional atuação lacônica. Ele interpreta um sargento veterano, que com seu pelotão de infantaria luta na costa argelina contra as tropas nazistas, desembarcando na Normandia, no episódio que ficou conhecido como Dia D. John Wayne havia sido cotado para o papel, mas foi descartado pelo diretor. “Eu queria fazer um filme sobre um cara que se mistura com os outros, não um herói. Eu queria um homem cansado, macilento, ossudo”, justificou. Glorificado pela crítica, não resultou muito bem em termos comerciais.