O MISTÉRIO da MAIOR de TODAS as ESTRELAS
em livro alentado de Barry Paris
Enquanto existir uma coisa chamada Cinema e outra, o cinéfilo, livros sobre GRETA GARBO não deixarão de sair. Dentre os que li, existentes no mercado, creio que o mais completo, substancial (e contraditório, como não poderia deixar de ser) é “Garbo / idem” (1995), de Barry Paris, pela editora Nova Fronteira. São 554 páginas para o admirador de Garbo ficar satisfeito e, ainda assim, pedir mais. A capa e a contracapa do livro trazem fotos tão belas de Garbo que o fã corre o risco de comprar o calhamaço, como muitos, só pela sedução que as fotos exercem. Se for do tipo superficial, que mais exibe do que lê livros, ficará contente, mas, se exigir mais, terá uma decepção com o que há lá dentro – as fotos internas, embora de importância histórica e documental inegável, são de qualidade bem duvidosa. O livro acaba valendo pelo que Barry Paris escreveu.
Mas, no caso de biografias de astros e estrelas de cinema, o fenômeno básico do “star system” – o da idolatria cega do espectador a seus deuses– continua em pé. Duvido que alguém que gostasse de, por exemplo, Lana Turner, e que fosse dotado de algum discernimento literário, pudesse apreciar o que a estrela escreveu sobre si mesma (com auxílio de algum “ghost writer”, sem dúvida alguma) num livro da Francisco Alves chamado “Lana”, ainda encontrável em sebos. Leu como fã, e nada mais. Leitura de fã é sempre apaixonada, uma espécie de consumo vicioso, e os livros desse tipo são consumidos sem muita exigência de que o escritor seja bom. Basta ser competente, na linha dos artesãos meticulosos, pesquisadores profissionais e jornalistas que conhecem seu ofício que a América oferece aos montes. Ninguém se importa muito com a qualidade literária da biografia das estrelas, na verdade, já que amá-las parece ser uma coisa que forçosamente implica em fraquezas e complacências. Como cinéfilo, tenho dessas fraquezas desculpáveis à luz da paixão, acumulando um bom número de livros sobre atrizes e atores cuja qualidade está entre o dúbio e o razoável, quando não é ruim mesmo, como o tal livro autobiográfico de Lana Turner. Nos anos 70 e 80, livros desse tipo foram saindo sem cessar, pela Francisco Alves e outras editoras – sobre Lauren Bacall, Ingrid Bergman, Elizabeth Taylor etc. Fazem sucesso, mas só são encontráveis nos sebos virtuais ou nos bons sebos reais de grandes cidades.
O autor de “Garbo”, Barry Paris, teve muito cuidado em seu empreendimento – um monte de gente é citada, agradecimentos aos depoimentos recolhidos são feitos em profusão e o livro tem um ar digno e convincente. Mas, há algo com as biografias de estrelas que é sempre paradoxal: queremos saber muito, mais, mais, mais, queremos saber toda a verdade (se tal é possível), juramos exigir qualidade e rigor, mas ao mesmo tempo, estamos dispostos, por paixão, a ignorar as manipulações, adulterações, conciliações, remendos, que podem ter sido feitos pelos biógrafos – estamos ávidos por bisbilhotices saborosas, historinhas que nunca, na verdade, poderão ser comprovadas, detalhes engraçados, grotescos, comoventes. Em suma, todo mundo, ao ler um livro desses, é suspeito: suscetível de ser alimentado por mentiras ou fatóides, está na verdade se curvando ao ídolo, a um objeto de devoção – e o ídolo desperta um apetite pela irracionalidade que pode ser despudorado e sem limites. A verdade – onde será que mora essa senhora mesmo? – conta pouco, nesses casos.
TEMOR à IDOLATRIA
Curiosamente, GARBO foi vítima precisamente disso, em toda a sua vida. Vítima dessa idolatria que sufoca, que interroga desesperadamente, que quer entrar em todos os poros do idolatrado, não deixar um respiradouro para o ser humano, para a pessoa assustada e frágil que pode existir por debaixo do mito. Essa curiosidade (que nada tem de inofensiva, que pode ser doentia e violadora) sempre a apavorou. No livro de Paris, que resumirei dentro do possível, ela surge como uma moça de grande beleza não lapidada (bem gordinha, aliás, e com dentes tortos), ao chegar a Hollywood, levada pelo diretor sueco Mauritz Stiller, foi “reformatada” pela Metro para se tornar a divina Garbo que o mundo conheceu e amou. Com atos e perguntas ingênuas, que despertavam risadas, falando Inglês com dificuldade, simplória como uma camponesa sueca sob muitos aspectos, ficou isolada em Hollywood, detestando o sol da Califórnia, morrendo de saudades da Suécia. Molhava-se o tempo todo, para combater o calor, e sonhava com neve (ver a volúpia com que se cobre de neve em “Rainha Christina / Queen Christina”, 1933).
Mauritz Stiller, o diretor que a levou, era um homem famoso na Europa e não gostou do sistema americano, pois os produtores não simpatizaram com seu excesso e, além disso, era homossexual, envolvia-se liberalmente com rapazes, ignorando o puritanismo da América. Resultado: acabou voltando para a Suécia sem fazer filme algum e morreu esquecido. Sem seu mentor, solitária, GARBO ficou em Hollywood como um alienígena perdido em planeta estranho e foi obrigada a construir sua carreira com dramalhões em geral horrorosos. Ela detestava tudo aquilo e, forçada a adaptar-se aos modelos publicitários dos estúdios da Metro, foi aos poucos rebelando-se contra toda aquela hipocrisia puritana, alimentada por fuxicos sádicos. Recolhia-se, esquivava-se. Como se tornou um grande sucesso, aprendeu a fazer as coisas à sua maneira e a impor seu temperamento difícil. A “griffe” Garbo, no final dos anos 20 e nos anos 30, passou a incluir a recusa obstinada à publicidade. Era uma aversão verdadeira, e foi tomada como pose. Mas, ela estava envolvida em contradições insolúveis – ser uma estrela de cinema amada pelo mundo inteiro e ao mesmo tempo uma eremita é coisa para enlouquecer.
É muito boa a parte do livro que cuida de sua infância, quando Barry Paris a mostra como uma menina que parecia ter consciência de que era predestinada a ser uma rainha solitária e mostrava já um enorme medo da fama. Isso não parece charme nem teoria romanesca com fumaça de misticismo adequada à mitificação – Garbo parecia mesmo patologicamente sensível à superexposição, e, mesmo com uma vaidade humanamente compreensível, nunca se reconciliou com os preços concretos e inevitáveis decorrentes da fama. Sofreu com essa situação mais que qualquer outra estrela que se conheça, pois foi a mais famosa de todas. Esse é seu maior enigma, e parece uma brincadeira particularmente cruel do Destino que uma mulher tão fóbica a essas coisas tenha se tornado a criatura mais famosa (e exposta) do planeta.
Quanto aos filmes, alguém escreveu que GARBO passava por eles como uma condessa fazendo visita a uma favela. E é verdade: a maior parte são peças de museu que não merecem reverência, embaladas pela música de certo Herbert Stothart, compositor da Metro que roubava escandalosamente melodias de Tchaicovksy. Seus galãs foram, no mais das vezes, atores fracos, quando não canastrões inaceitáveis. Os únicos filmes dela que se salvam são “Rainha Cristina”, “Ninotchka / idem” (1939) e “A Dama das Camélias / Camille” (1936), porque, tivessem quantos defeitos tivessem, ajustavam-se feito luva à sua personalidade. Há também a interpretação marcante para a heroína de Tolstoi em “Anna Karenina / idem” (1935), em que parece amar mais o filho que o amante (o conde Vronski, vivido por Fredric March) e está soberba como a grande suicida. Teria sido uma Emma Bovary perfeita, mas, quando Hollywood lembrou-se de filmar a heroína de Flaubert, confiou-a a Jennifer Jones num filme esquecido de Vincente Minnelli.
Sua carreira termina nos anos 40, com o fracasso de uma comédia, “Duas Vezes Meu / Two-Faced Woman” (1941), que parece nem ser lembrada no Brasil (ou em qualquer outro lugar do mundo), quando foi dirigida por George Cukor. Já erguera sua fama dúbia – diziam-na lésbica, mas nada se provava, embora tivesse muitas amigas homossexuais e gostasse de ser cortejada por elas. A Metro inventou que tinha um caso com o galã John Gilbert (risível em “Rainha Cristina”), e ele na certa esteve apaixonado por ela, mas Garbo era avessa ao casamento, avessa a ligações, e sempre foi assim – parecia querer ser amada, mas a ideia de intimidade constante, regular, a apavorava. Os casos mais ou menos públicos que teve foram célebres – com o maestro Leopold Stokowski e com o fotógrafo Cecil Beaton. Beaton era homossexual assumido e talvez por isso não a incomodasse muito (a agressividade que ela supunha ser inseparável dos homens heterossexuais a apavorava). Mas ele foi oportunista, mais que a amou: fotografou-a e divulgou fotos sem a sua aprovação, e ela nunca o perdoou. Traiu-a no que mais prezava: sua privacidade, a divulgação de sua imagem não-pública.

GARBO temia essas coisas de maneira instintiva, quase primitiva, como algumas tribos indígenas que sempre acharam que as máquinas fotográficas roubariam as suas almas. Tudo indica, a partir de Gilbert, Stokowski e Beaton, que foi bissexual, mas sem entusiasmo. Referia-se a si mesma, na intimidade com as amigas “entendidas”, como um homem, de vez em quando: “O garoto aqui fez isso... o garoto aqui fez aquilo.” Lançou uma moda andrógina, andava de calças, gostava de atitudes masculinas, pediu a Aldous Huxley, ninguém menos, que escrevesse um roteiro sobre a vida de São Francisco de Assis para ela – queria interpretar o santo, usando um bigode. Era uma caminhante, adepta do vigor físico com certo fanatismo, mas, a rigor, era tudo e nada, sexualmente.
LONGE das TELAS, QUEM FOI GARBO?
Quando se afastou do cinema, era já uma mulher muito rica (e com fama de sovina). Aí, afastada da tela, Garbo reassume, segundo Paris, uma personalidade um pouco árida superestimada pelo fato de ser uma reclusa, de ter sido quem foi. Volta e meia ameaça voltar às telas com roteiros que lhe são oferecidos por dezenas de diretores e produtores que a veneram, mas não volta. Dedica-se aos amigos (muito ricos, em geral) e a uma vida em fuga aos repórteres, fãs, revistas, jornais, televisões – sempre apavorada com ser reconhecida, multiplicando pseudônimos, arranjando endereços e números de telefone a que raríssimos tiveram acesso. Passará a sua vida, envelhecerá, como uma criatura “à deriva” (ela mesma dizia isso), contando com a cumplicidade dos amigos milionários para continuar esquiva, escondendo-se na Suíça, andando pelas ruas de Nova York como uma transeunte comum, debaixo de roupas sem graça e óculos escuros. É onde o livro começa a pintar uma mulher mais para antipática.

Garbo chega a nos parecer uma egomaníaca insuportável, abusiva com os amigos de quem exige códigos, mudanças de comportamento, dezenas de concessões e ajustamentos para que não seja perturbada, para que os importunos não apareçam. Não desperta simpatia essa ociosa que decide viver numa vadiagem sem sentido, abastecida por uma conta bancária segura, pelo resto da vida. Parece uma solteirona neurótica, desocupada e com mania de dietas, remédios, de frequentar charlatões “esotéricos” etc. É dada a rompantes de generosidade, mas, em geral, como toda pessoa muito rica, tem um culto doentio ao dinheiro pelo dinheiro, e com um jeito de velha avarenta, egoísta, ranzinza, que não gostaríamos de ter como vizinha. Mas essa impressão pode não fazer muito sentido. No entanto, é louvável que Paris tenha adotado, em sua biografia, uma linha de investigação que não é reverente em excesso, podendo pintar também as contradições e facetas menos agradáveis de uma mulher tão mundialmente adorada.
GARBO fora das telas não podia se queixar: teve idólatras e fãs embasbacados até o fim da vida. Carregou para o seu pequeno círculo privado a adulação pública que teve na Metro, nos anos de cinema. Fugia a ser paparicada, mas, contraditoriamente, gostava bastante disso. O que queria era ser paparicada de um modo muito peculiar, segundo um código pessoal bastante restrito. O que há de poesia, nessa árida segunda parte do livro, é uma confissão patética: saía de casa em Nova York e se punha a seguir qualquer pessoa desconhecida na multidão, indo onde a tal pessoa escolhida fosse, apenas para fazer de conta que possuía um objetivo, um rumo, confundindo-se com uma humanidade de que sempre procurou ficar distante. Nessas perambulações, era reconhecida por muita gente – outros famosos, como o escritor Truman Capote. Faziam parte de um grupo informalmente conhecido como os “Vigilantes de Garbo”. Há uma grande beleza nisso – gente que protege a solidão de um mito das implacáveis investidas e da curiosidade estúpida do mundo. E morreu assim, com pouca gente por perto, sem voltar ao cinema, só lembrada pelo rosto e por ter sido o encanto (aliás, eterno) de filmes ruins.
“Garbo” junta muito material contraditório e é um pouco cansativo, apesar de detalhado e bem escrito. É o livro mais completo existente sobre a estrela no mercado brasileiro. E reconheço que, quem não a admire muito, não poderá ser criticado pela falta de paciência para ir até o fim com a leitura. Mas, vale a pena comprá-lo, nem que não seja para lê-lo. Muita gente ficará satisfeita só de olhar para a capa e a contracapa. Um rosto como aquele, difícil haver outro. Clarice Lispector carregava consigo uma fotografia de GARBO diz sua biógrafa Olga Borelli. Faz sentido. Olhar para ela é olhar para uma belíssima pergunta, das muitas que a escritora formulou. Sem resposta possível.
texto de
CHICO LOPES