março 29, 2025

**** VALERIO ZURLINI, o CINEASTA da MELANCOLIA

jacques perrin e marcello mastroianni em dois destinos

 

Todos os meus filmes se parecem, 
do primeiro ao último. Neles, como na vida, 
amar é inútil, porque amar implica 
a infelicidade. É inútil acreditar 
em alguém porque irá se desapontar. 
Definitivamente, se trata sempre 
não da tragédia existencial, 
mas da tristeza existencial.
VALERIO ZURLINI
 
Não há cineasta mais delicado
 do que Valerio Zurlini. É um autor 
cuja doçura triste, delicadeza de traço, 
constância, têm muito a nos dizer. 
Sobre a vida, sem dúvida, 
mas também sobre o cinema.
INÁCIO ARAÚJO
(1948. São Paulo / SP)
crítico de cinema
 
 
Embora o nome de VALERIO ZURLINI (1926 – 1982. Bolonha / Itália) seja respeitado, raramente se encontram referências a sua obra em livros sobre cinema. Não compreendo porque motivo a literatura cinematográfica especializada demonstra completa ignorância em relação ao cineasta. Autor de algumas das mais singulares obras-primas produzidas entre os anos 1950 e 1970, no esplendor da era de ouro do cinema italiano, investiu uma rara delicadeza para compor narrativas intimistas. Nos seus filmes enxergamos a Itália através das percepções de um artista sensível e culto, visualmente influenciado pelos pintores Giorgio de Chirico, Giorgio Morandi e Ottone Rosai. Conhecido como o “Poeta da Melancolia”, sua criação fílmica mostra paisagens melancólicas, além de expor uma visão minuciosa e inquietante através de personagens muito bem construídos emocionalmente. Dirigiu apenas oito longas-metragens. Nos seus últimos anos de vida se dedicou ao ensino no Centro Sperimentale di Cinematografia em Roma.
 
valerio zurlini
Depois de atuar na Resistência, se formou em Direito para contentar seu pai e entrou no Centro Universitário de Teatro, em Roma, estudando ao lado de Marcello Mastroianni, Giulietta Masina e Gabriele Ferzetti. Começou a se interessar pelo cinema no final da década de 1940. Entre 1950 e 1953 filmou onze documentários nos quais revelou talento, concebidos mais em forma de pequenos contos do que como fotografias de uma fatia da vida. Sua carreira alcança os longas-metragens em “Quando o Amor é Mentira” (1955), extraído do romance homônimo de Vasco Pratolini e apresentando um estilo narrativo elegante e sensível. A seguir escreveu o roteiro de “Guendalina / Idem” (1957), ganhando o cobiçado Nastro d'Argento. O seu reconhecimento ocorreu em 1959 com a obra-prima “Verão Violento”, um drama de amor tendo como pano de fundo o final da Segunda Guerra Mundial, confirmando a sua atitude de aprofundar o psicológico dos personagens. 
 
Em 1961, rodou “A Moça com a Valise”, um filme afetuoso e delicado de um amor platônico entre um adolescente e uma mulher um pouco mais velha. Em 1962, concretizou o seu projeto “Dois Destinos”, adaptação de outra obra de Pratolini, onde mais uma vez predomina a poesia dos sentimentos. Após alguns filmes menores, VALERIO ZURLINI voltou a lidar com o mundo dos sentimentos, mas desta vez gravitando em torno das dúvidas existenciais e do fantasma da morte, em “A Primeira Noite de Tranquilidade”, de 1972. Com grande habilidade, em 1976, dirigiu a versão cinematográfica de “O Deserto dos Tártaros”, que traduziu o romance mais popular de Dino Buzzati em imagens esplêndidas. Cineasta   da   melancolia, ele   filmava a trajetória humana em busca de sua própria identidade. Não parece há saída para os seus personagens   senão   viver a vida, mesmo na crença de que não havia objetivo nenhum na existência. Talvez o que una todos esses personagens seja a tristeza. 

zurlini e jacques perrin
O francês Jacques Perrin era o seu ator favorito. Ele protagoniza três das suas obras mais importantes: “A Moça com a Valise”, “Dois Destinos” e “O Deserto dos Tártaros”. Chama a atenção pela doçura, pela beleza triste. Não resta dúvida de que a infelicidade se abaterá sobre ele. Apesar do sucesso de crítica e de público de seus filmes, VALERIO ZURLINI não conseguiu concretizar vários projetos. Planejou com Pier Paolo Pasolini, seu amigo, um filme sobre São Paulo, que não se realizou. Se dedicou a “Al di la dal Fiume e tra gli Alberi”, estrelado por Burt Lancaster e Audrey Hepburn, mas morreu antes de iniciá-lo. Sua morte prematura, aos cinquenta e seis anos, aconteceu em consequência de uma hemorragia gastrointestinal causada por uma cirrose hepática.
    
Após sua morte, seu trabalho caiu em relativa obscuridade, mas recuperou popularidade na década de 2000, depois que várias de suas retrospectivas foram recebidas com sucesso internacional. Durante os longos invernos venezianos, poucos anos antes de morrer, ele escreveu sobre arte, da qual era um grande conhecedor. Deixou inconcluso um romance – “L’Estate Indiana” – e no ano seguinte ao de sua morte, em 1983, foi publicado, com prefácio de Pratolini, o seu “Gli Anni delli Immagine Perdute”. É um diretor que poderia ter ido mais longe, ter feito muito mais filmes. Uma obra interrompida pelas dificuldades de produção, pelos amores fracassados, pela doença. A despeito do esquecimento em torno da sua filmografia (tanto na Itália quanto fora), não há como negar os seus extraordinários e sempre atuais filmes, nascidos de um verdadeiro autor.
 
claudia cardinale em “a moça com a valise
thriller de o deserto dos tártaros
TODOS os FILMES de ZURLINI
(por ordem de preferência)
 
01
DOIS DESTINOS
(Cronaca Familiare, 1962) 
 
elenco: Marcello Mastroianni, Jacques Perrin, Sylvie, 
Salvo Randone e Valeria Ciangottini
 
Separados ainda crianças, dois irmãos se reencontram adultos. A longa separação fez com que poucas semelhanças fossem preservadas. O mais velho, um jornalista, tornou-se ideologicamente de extrema esquerda. O mais novo, educado pela aristocracia local, frequentou os melhores colégios. Caberá ao primogênito cuidar do frágil caçula que está muito doente. Sóbrio retrato de laços de sangue e barreiras sociais que ora atraem, ora afastam as pessoas. Um belo drama existencial com excelentes atuações.
 
Leão de Ouro (Melhor Filme) no Festival de Veneza
 
02
VERÃO VIOLENTO
(Estate Violenta, 1959)
 
elenco: Eleonora Rossi Drago, Jean-Louis Trintignant, 
Enrico Maria Salerno e Jacqueline Sassard
 
Em 1943, em plena Segunda Guerra Mundial, jovens italianos, ricos e desocupados, gastam seus dias à beira do mar, animados por romances passageiros e inconsequentes, longe dos campos de batalha e da mira dos bombardeiros norte-americanos. Um deles se apaixona por uma mulher mais velha, viúva de um oficial da Marinha. O filme mostra o vazio que circundava a juventude daquele período, um vazio intelectual, cultural, uma ausência de fé, uma ausência de expectativa em relação ao futuro.
 
03
A PRIMEIRA NOITE de TRANQUILIDADE
(La Prima Notte di Quiete, 1972)
 

elenco: Alain Delon, Giancarlo Giannini, Sonia Petrovna, 
Renato Salvatori, Alida Valli, Salvo Randone 
e Lea Massari
 
Filme italiano de maior sucesso em 1972, foi também o que o diretor confessou que teve menos prazer em realizar. Ele e o ator-produtor Alain Delon não se entenderam e discutiram muito. Para Zurlini, Delon era o extremo oposto da moral do seu personagem, um maduro professor de literatura à deriva e prestes a se separar da mulher. Ateu e alcóolatra, ele se apaixona por uma aluna que faz parte de um grupo de playboys, sai com qualquer um e está envolvida em pornografia e prostituição. 
 
04
A MOÇA com a VALISE
(La Ragazza con la Valigia, 1960)

elenco: Claudia Cardinale, Jacques Perrin, Romolo Valli, 
Corrado Pani e Gian Maria Volontè
 
Esse filme tornou a bela Claudia Cardinale uma estrela internacional. Ela faz uma garota pobre, abandonada à própria sorte por um galanteador, que se torna amiga de um adolescente rico e solitário (e irmão mais novo do playboy). Seduzida pelo primeiro com falsas promessas, ela não aceita ser abandonada. O desenvolvimento da trama, a vida da mulher vítima de um mundo cínico e o amor impossível de um garoto, encontra seu clímax nas mais óbvias e banais situações de uma cidade à beira mar.
 
05
O DESERTO dos TÁRTAROS
(Il Deserto dei Tartari, 1976)
 
elenco: Jacques Perrin, Vittorio Gassman, Giuliano Gemma, 
Helmut Griem, Philippe Noiret, Francisco Rabal, 
Fernando Rey, Laurent Terzieff, Jean-Louis Trintignant 
e Max von Sydow
 
Adaptado do romance de Dino Buzzati, produzido por Jacques Perrin e com um elenco de estrelas.  O resumo mais acabado de suas ideias: o tempo, a inquietação (que aqui se traduz por tédio), a expectativa, é o que nos destrói. Tenente é enviado para uma fortaleza localizada no deserto, construída para prevenir um possível ataque pelos temidos tártaros. Todos os soldados que habitam o local sacrificam sua juventude para defender a nação do inimigo imaginário, vigiando o horizonte.
 
David de Donatello de Melhor Filme e Melhor Direção
 
06
MULHERES no FRONT
(Le Soldatesse, 1965)

elenco: Mario Adorf, Anna Karina, Marie Laforêt, 
Lea Massari, Tomas Milian e Valeria Moriconi
 
Grupo de prostitutas é
“convocado” para trabalhar em prostíbulos militares italianos durante a Segunda Guerra Mundial, com o objetivo de animar seus soldados. A trama, no entanto, se desenvolve a partir do relacionamento das garotas com os três militares que as conduzem na longa viagem que empreendem em direção à base militar, localizada em uma região montanhosa da Grécia. No elenco, Anna Karina, a musa de Godard.
 
07
SENTADO à sua DIREITA
(Seduto alla sua Destra, 1968) 

elenco: Woody Strode, Franco Citti, Jean Servais 
e Pier Paolo Capponi
 
Livre adaptação da biografia do político africano Patrice Hemery Lumumba, um líder nacionalista que se tornou primeiro-ministro do Congo e foi assassinado depois de uma crise política. Foi lançado em alguns países com o título de
“Jesus Negro”. A intenção era apresentar Lumumba como Cristo, convivendo no cárcere com um delinquente que corresponderia ao ladrão crucificado à esquerda de Cristo. A influência de Pier Paolo Pasolini é evidente, inclusive na participação de um dos seus atores, Sergio Citti.
 
08
QUANDO o AMOR é MENTIRA
(Le Ragazze di San Frediano, 1955)

elenco: Antonio Cifariello, Rossana Podestà, Giovanna Ralli 
e Corinne Calvet
 
As artimanhas utilizadas por um jovem mecânico, em seus jogos de sedução, chegando a namorar cinco garotas ao mesmo tempo. O realizador bolonhês transforma esta comédia com toques irônicos num estudo psicológico sobre a vaidade humana. Adaptado livremente do romance de Vasco Pratolini, a estreia de Zurlini em longa-metragem seria o seu único filme mais leve, embora também seja tingido com alguma angústia. Um estudo sensível e divertido das psicologias, especialmente das mulheres.
 
valerio zurlini
FONTES
“A Dimensão do Silêncio no Cinema de Valerio Zurlini” (2008)
de Celia Regina Cavalheiro
 
“Elogio Della Malinconia. Il Cinema di Valerio Zurlini”
(2000)
de Giamfranco Casadio
 
“A Praia no Deserto. Os Filmes de Valerio Zurlini”
(2007)
de Francesco Savelloni
 
“Valerio Zurlini”
(1993)
de Sergio Toffetti
 
“Valerio Zurlini”
(2001)
de Gianluca Minotti

 
o deserto dos tártaros

“Viver a vida não possui outra finalidade senão deixá-la escorrer e a morte é a única justificativa... Não existe validade de um sentimento, não existe validade de uma ilusão, não existe idealismo que dure, não existe nada que escape da amarga sobrevivência. De minha parte existe um consolo cristão, mas em sentido leigo, pagão.”
VALERIO ZURLINI
 


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