ELA VESTIA VELUDO AZUL...
Tive minha vida mudada por um filme. É certo que livros, músicas, bandas de rock também mudaram minha vida, de uma forma ou de outra, mas neste texto falaremos de cinema. Cinéfilo desde a pré-adolescência, daqueles de adorar a magia da projeção cinematográfica, como o menino Totó de “Cinema Paradiso”, poderia listar uma penca de filmes que me encantaram e me impressionaram. Contudo, foi VELUDO AZUL (Blue Velvet, 1986) o filme que mudou efetivamente minha forma de ver o cinema, de ver a vida em geral e a minha própria vida. Porém, não se trata do filme da minha vida (que é “Verão de 42”) nem o que mais vezes assisti (“Jesus Cristo Superstar”, que vi 19 vezes contadas, cantadas e catalogadas). Tudo bem que assistir “Hair”, em 1988, foi uma espécie de revelação divina e o filme foi responsável direto por eu deixar crescer os cabelos nos anos dourados da juventude, mas nesta altura VELUDO AZUL já tinha feito minha cabeça.
A paixão começou nos idos de 1986, quando, adolescente tímido recém chegado no Rio de Janeiro, passava boa parte do meu tempo assistindo filmes, fosse na TV (nos bons tempos em que a Rede Globo exibia clássicos à noite), vídeo-cassete e cinema. Na tela grande, gostava de filmes bem hollywoodianos, tipo “Passagem para a Índia” e “Amadeus”, sucessos à época. Mas, nas resenhas dos cadernos culturais dos jornais os críticos só falavam de um tal VELUDO AZUL, do americano David Lynch, que era instigante, macabro, melhor filme do ano etc. Bateu a curiosidade de assisti-lo, claro, mas deparei com um problema: a censura do filme - sim ela existia naquele tempo e era razoavelmente rigorosa - era 18 anos. Eu mal contava dezesseis. Preferi não arriscar ser barrado no cinema e convenci papai e ir comigo, me autorizando para o bilheteiro a entrar. Lá fomos nós em uma tarde de sábado na sala 1 do finado (tornou-se uma sede da Igreja Universal...) Cine Lido, na Praia do Flamengo. Entrei na sala como uma pessoa e duas horas depois, saí outra. Tudo me encantou e me impressionou no filme. Papai pouco se impressionou com o filme e até cochilou uma meia hora - velho hábito dele - na sala de projeção.
Para quem desgraçadamente não viu o filme, um resumo: a trama é extremamente simples. Jeffrey (Kyle McLaughan, alter-ego e sósia do diretor) vive uma existência pacata naquelas cidadezinhas insípidas dos Estados Unidos quando de repente encontra uma orelha em um jardim. A partir deste fato corriqueiro, ele trava contato com a bela e misteriosa Dorothy (Isabela Rossellini) e com o perigoso Frank (Dennis Hopper, espetacular!) e se envolve com pessoas e situações que mostram a ele que o mundo não era exatamente cor de rosa como ele pensava. Em suma, a experiência que Jeffrey viveu na trama, vivi durante a exibição do filme. Ao se acenderem as luzes eu tinha certeza que, como Jeffrey, jamais veria o mundo da mesma forma. Como diz a namorada de Jeffrey (Laura Dern) em uma cena, “este é um estranho mundo”. E coisas estranhas não faltam no filme: um vilão que respira gás hélio e chora com músicas antigas, um travesti dublando Roy Orbison, perversões sexuais, gente morta em pé, como um abajur... uma série de bizarrices tão comuns que evocam Caetano Veloso: “de perto, ninguém é normal”.
Há a trilha sonora... está gravada no HD da minha mente a cena em que Isabella Rossellini canta o clássico “Blue velvet” aos sussurros, na boate... “she wore blue velvet, bluer than velvet was her eyes…” E Dean Stockwell dublando “In dreams” do mestre Roy Orbison? E o uso da belíssima “Love letters”? Mas nada se compara ao cinismo agridoce da cena final, um pastiche de final feliz com Julee Cruise - cantora fetiche de Lynch - cantando a macabra “Mysteries of Love”. Seria impossível eu sair imune a tal filme. Não saí. Tanto que no dia seguinte comecei a abandonar - embora não totalmente - os dramas tradicionais de Hollywood e adentrar no terreno pantanoso de Scorcese, Woody Allen, Jim Jarmush, à procura de sensações como a que VELUDO AZUL me proporcionou. Daí para mergulhar no universo de Bergman, Almodóvar,Pasolini, Saura e Scola foi um passo. E adeus dramas lacrimosos com Sally Field e Sissy Spacek. E adeus filmes como “Robocop” e “Os Goonies”. Passei a economizar meus trocados para descobrir filmes estranhos nos cineclubes.
dennis hopper e isabella |
Quatro anos depois, David Lynch faria mais um filme que se inscreveria a fogo em minh´alma: “Coração Selvagem”, um on the road maluco com Nicholas Cage e Laura Dern, músicas de Elvis Presley, sangue a rodo e uma estética alucinada. Assisti ao longa sozinho, em um cinema vazio e sujo em São Paulo, com a consciência que aquele filme também mudaria minha vida. Mudou, mas aí já seria uma outra história. Lynch continuaria agradando aos devotos com a série “Twin Peaks”, que para quem não se lembra mudou a história da televisão americana e filmes como “A Estrada Perdida” e “Mullholland drive - Cidade dos Sonhos”. Filmes sem pé nem cabeça e sem lógica, mas, que diabos, quem precisa de lógica na vida ou no cinema? Assistir a um filme de Lynch é uma experiência extra-sensorial. Nem todos gostam, é claro. Mas, quem vai ver um filme de Lynch é bom saber que vai adentrar um universo alucinado, pessoal e surreal. Este ano ele lançou nos EUA e na Europa seu mais novo filme, “Inland Empire”, que dificilmente chegará nestas terras cinematográficas tomadas por Piratas e Aracnídeos e comédias americanas cretinas. Enquanto isso, resta aos lynchmaníacos, espécie de confraria de gente que não bate muito bem da bola (alô, Rosa Williams!) e que sabe que o mundo real não é este que vemos, rever toda a cinematografia do cineasta mais esquisito do mundo. Afinal, she wore blue velvet...
Texto de
CEFAS CARVALHO
CEFAS CARVALHO
jornalista
VELUDO AZUL
BLUE VELVET
(1986)
(1986)
País: EUA
Gênero: Suspense
Duração: 120 mins.
Duração: 120 mins.
Cor
Produção: Fred Caruso (DEG)
Direção e Roteiro: David Lynch
Fotografia: Frederick Elmes
Edição: Duwayne Dunham
Música: Angelo Badalamenti
Cenografia: Patricia Norris (d.a.); Edward 'Tantar' LeViseur (déc.)
Vestuário: Ronald Leamon
Elenco:
Kyle MacLachlan (“Jeffrey Beaumont”), Isabella Rossellini (“Dorothy Vallens”),
Dennis Hopper (“Frank Booth”), Laura Dern (“Sandy Williams”),
Hope Lange (“Sra. Williams”), Dean Stockwell (“Ben”),
Priscilla Pointer e Brad Dourif (“Raymond”)
Nota: ***** (ótimo)
Prêmios: Melhor Ator (Hopper) do Festival de Montreal (Canadá);
Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Fotografia
e Melhor Ator Coadjuvante (Hopper)
do Círculo dos Críticos de Cinema de Boston;
e Melhor Ator Coadjuvante (Hopper)
do Círculo dos Críticos de Cinema de Boston;
Melhor Diretor e Melhor Ator Coadjuvante (Hopper)
da Associação dos Críticos de Cinema de Los Angeles;
da Associação dos Críticos de Cinema de Los Angeles;
Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Fotografia
e Melhor Ator Coadjuvante
(Hopper) da Associação Nacional dos Críticos
de Cinema dos EUA.
e Melhor Ator Coadjuvante
(Hopper) da Associação Nacional dos Críticos
de Cinema dos EUA.
isabella rossellini |
16 comentários:
Blue Velvet,cult movie de primeira, enorme impacto no final dos anos oitenta, esta década fundamental.
Só por desabafo: a minha vida foi mudada por "The man-machine" do Kraftwerk.
O meu predileto é Blade Runner (vi 26 vezes, por enquanto).
Soube desde o início que esse texto era de Cefas hahaha Muito bom. Isabela Rosselini é incrivel, mesmo em papeis pequenos como a vilã de Alias e da miniserie americana Alice. Até quando fez uma ponta mínima no seriado Friends, chamou atençao.
Que bom saber que o filme da tua vida foi esse magnífico "Verão de 42"...
outro grande pró de Lynch é que ele não é só um grande diretor de filmes estranhos. O HOMEM ELEFANTE e UMA HISTÓRIA REAL são, de certa forma e maneiras diferentes, melodramas. e dois filmes lindos, pelo que me lembro. na sua fase mais "nonsense", o melhor talvez seja MULHOLLAND DRIVE, que não deixa de ser uma espécie de coletânea das bizarrices dele. um dos maiores diretores vivos, sem dúvida. texto muito bacana, Antonio.
e de VELUDO AZUL, especificamente, talvez sequência de In Dreams seja minha preferida.
David Lynch é malucão, e gosto do estilo dele. Mas infelizmente, meu conceito pelo seu cinema é menor dq eu gostaria.
gosto bastante da atuação da Isabela Rosselini em Veludo Azul,apesar de fazer poucos filmes ela é muito talentosa e tem um magnetismo com certeza herdado dos seus pais.
Veludo Azul é mesmo um marco, gosto bastante, apesar de preferir outras obras de Lynch, principalmente a série Twin Peaks que, como você citou, mudou a história da televisão americana.
Jesus Cristo Super Star é ótimo, mas não vi tantas vezes, Hair estaria na lista dos meus mais visto, hehe. Assim como A noviça Rebelde e E o vento levou, perdi as contas de quantas vezes vi os três.
abraços
Filme extremamente perturbador. Postagem maravilhosa.
David Lynch é um gênio sem sombra de duvida que (infelismente) conheci meio que tarde em 2002, justamente com a chegada do filme Cidade dos Sonhos. Assistindo aquele filme, logicamente, fiquei viciado pelo diretor e fiquei caçando seus filmes. De todos que eu vi (por mais bom que seja veludo azul)acho que Cidade dos Sonhos é sua maior obra prima e se tornou para mim o segundo filme preferido da minha vida (perdendo para Blade Runner). Até hoje, é um longa que levanta inumeras teorias e cada um com a sua interpretação, e só por isso, merece estar em qualquer lista de melhor de todos os tempos.
Nahud, valeu a bela postagem e edição do meu texto sobre Veludo Azul. Pelos comentártios dos seus leitores-cinéfilos, percebo que o filme, mais de 20 anos depois, continua temdo relevância e mobiliza as atenções dos cinéfilos. Abração, amigo e lá vamos nós rumo á entrevista para a Papangu.
Eu amo a música Blue Velvet.
Lindo o depoimento da jornalista. Como nunca vi o filme, só posso deixar meus parabéns pelo seu modo de narrar a importância dele em sua vida. Concordo com ela de que não precisamos de lógica nem na vida, nem (muito menos) no cinema. Lembro vivamente da minha sensação quando saí do cinema depois de ver Mullholland drive (que preciso rever agora pra tentar entender...).
Bjs
Dani
Outra coisa, é um alívio saber que Haley Osment vai voltar para as telas. Que falta faz um ator sólido como ele nesses tempos de vampiros chinfrins...
O problema de Veludo Azul é o Kyle McLaughan, um ator insosso que só. Felizmente Hopper rouba o filme.
Só vou dizer uma coisa: amei esse filme.
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