janeiro 23, 2012

****** SALA VIP: “CARTA de uma DESCONHECIDA”



Ao longo da vida conhecemos muitas pessoas. Algumas delas ficam ao nosso lado até o fim dos nossos dias, outras durante um certo tempo, marcando-nos de um alguma maneira, mas a maioria não tem qualquer importância. Porém, essa indiferença banalizada nem sempre é recíproca. Sem saber, podemos exercer uma grande influência na vida de alguém que praticamente desconhecemos, e vice-versa. Desse fato corriqueiro, levado ao extremo, sustenta-se o hipnótico CARTA de uma DESCONHECIDA, um raro filme de arte hollywoodiano. Daquele que nos leva às lágrimas. Baseado num romance do escritor austríaco Stefan Zweig, que veio a se suicidar em Petrópolis, Rio de Janeiro, em 1942, e realizado pelo alemão Max Ophuls (1902 - 1957) durante sua breve passagem por Hollywood, tem roteiro de Howard Koch (o mesmo de “A Carta / The Letter”, 1940, e “Casablanca / Idem”, 1942) e os chatinhos Joan Fontaine e Louis Jourdan como protagonistas. Crítica mordaz e devastadora ao mito e à ideologia do amor romântico, ao mesmo tempo incentiva uma identificação do público com o sofrimento da estúpida heroína.

AMOR IMORTAL


Na bela Viena da virada do século 19, um pianista boêmio e mulherengo, Stefan Brand (o galã francês Louis Jourdan), recebe uma carta de uma suposta estranha confessando uma história de amor obsessiva. Quando ler esta carta, eu já estarei morta, anuncia a remetente. Então, em flashback, ficamos sabendo de sua pungente e abnegada paixão pelo egocêntrico pianista. Ainda garota, Lisa Berndle (Joan Fontaine, em comovente interpretação), sonhando em ser artista, apaixona-se platonicamente por esse músico célebre, alimentando-se de um sentimento ilusório. 

Ela deseja casar-se com ele, mas o amado nem sabe da sua existência e quase todas as noites dorme com uma mulher diferente. No entanto, terminam por se conhecer e vão rapidamente para a cama. No dia seguinte, ele parte em uma tournée para nunca mais voltar, deixando-a grávida. Anos depois, já casada com um rico senhor, ela o encontra casualmente na apresentação de uma ópera de Mozart, mas ele nem se lembra de sua existência. Do ponto de vista feminino, percebe-se o vazio da visão masculina sobre as mulheres. Mas o diretor, solidário, mudou o final do original e fez o mocinho fútil morrer em um duelo.

VIRTUOSISMO e SOFISTICAÇÃO

max ophuls
Conto melancólico do amor que brota da obsessão para cair no esquecimento, CARTA de uma DESCONHECIDA é implacável, com assombrosos movimentos de câmera, de planos e enquadramentos, de rostos expressivos nas sombras da ilusão e da esperança vã. Tragédia brutal do romantismo, realizada por um dos melhores diretores de todos os tempos, Max Ophüls, o cineasta do travelling, do virtuosismo da mise-en-scène e da sofisticação. Diretor internacional, ele abandonou a Alemanha no início do nazismo devido a origem judaica, realizando filmes na França, Itália, Holanda e nos EUA. 

Com extrema elegância narrativa, cenografia de bom-gosto e cuidadosa direção de atores, os seus filmes marcaram época, destacando-se os suntuosos e inteligentes “Conflitos de Amor / La Ronde” (1950), “O Prazer / Le Plaisir” (1952), “Desejos Proibidos / Madame De...” (1953) e “Lola Montès / Idem” (1955). No entanto, sua carreira se encerraria relativamente cedo, com as interferências dos produtores no elenco e na montagem de seu único longa colorido – com extraordinário tratamento do espaço na tela em CinemaScope -, Lola Montés, levando-o a uma morte súbita por desgosto. Jacques Becker o homenagearia em “Os Amantes de Montparnasse / Les Amants de Montparnasse” (1958), o mesmo acontecendo com Jacques Demy em “Lola, a Flor Proibida / Lola” (1961). Fenomenal na arte de filmar, no jogo de luzes e sombras, Ophuls  me lembra outro esteta: Luchino Visconti.

joan fontaine

Cineasta clássico (como William Wyler, Vincente Minnelli ou Otto Preminger), no mais puro sentido do termo, Ophüls preocupava-se com a beleza formal e técnica do enquadramento, e com um argumento bem definido, centrado fundamentalmente nas paixões amorosas transitórias. Seus filmes se caracterizam por impressionante beleza plástica, num estilo autoral que transforma um simples drama romântico em uma ardente experiência cinematográfica. Com movimentos de câmara fantásticos, conta suas histórias com tomadas sinuosas que duram vários minutos. Mas esse movimento constante não é meramente decorativo ou exibicionista. O cenário, no cinema de Ophüls, é importante, e ao explorá-lo incessantemente, demonstra como seus personagens são definidos, e muitas vezes constrangidos, pelo ambiente que os cerca.

PEIXES VOADORES CARIOCAS

Fracasso absoluto na época do lançamento – considerado exageradamente sentimental -, quase arruinando a carreira hollywoodiana de Max Ophüls (onde rodaria apenas mais dois – e excelentes - filmes), o sombrio CARTA de uma DESCONHECIDA teve boa aceitação na Europa. Curiosamente, muitos anos depois, tornou-se um dos filmes mais exibidos na tevê dos Estados Unidos. Mesmo de extrema importância, não é o melhor trabalho do genial diretor, mas é obrigatório. Para os românticos, imperdível. Para os cinéfilos, uma oportunidade de conhecer um mito do cinema. Como curiosidade, em um diálogo da personagem de Joan Fontaine, falando sobre o Rio de Janeiro, ela conta sobre a Baía da Guanabara, onde saltam peixes voadores.

joan fontaine
Trata-se de um clássico absoluto, de uma riqueza inesgotável, que dribla facilmente os clichês do melodrama. Ophüls e o fotógrafo Franz Planer (de “A Princesa e o Plebeu / Roman Holiday”, 1953) capturam, com rara habilidade, a atmosfera da Viena da Belle Époque, no que são ajudados pelo suntuoso figurino de Travis Banton. Merece ainda ser destacada, como um dos pontos altos, sua trilha sonora. Segundo a análise da ácida crítica Pauline Kael, em CARTA de uma DESCONHECIDA “Joan Fontaine sofre até não mais poder, porém de uma maneira tão elegante, nesta evocação romântica da Viena de fins do século XIX, que não sabemos se cobrimos de pancada a pobre criatura traída ou damos o braço a torcer e choramos. Max Ophüls fez este filme em Hollywood, mas sua Viena é de uma estilização tão romântica e de uma textura tão bela quanto seus filmes europeus. O tema (quase sempre o seu tema) é a diferença das visões do amor”.

Os ATORES

jourdan e fontaine
Com três indicações ao Oscar de Melhor Atriz, das quais ganhou injustamente por Suspeita / Suspicion, de 1941, Joan Fontaine (nascida em 1917), irmã mais nova da estrela Olivia de Havilland e inimiga mortal desta, estreou nas telas em “Adeus Mulheres / No More Ladies”, de 1935. Embora tenha sido protagonista com Fred Astaire em “Cativa e Cativante / A Damsel in Distress” (1937) e com Douglas Fairbanks Jr. em “Gunga Din / Idem” (1939), foi com o gótico “Rebecca, a Mulher Inesquecível / Rebecca” (1940), de Hitchcock, que atingiu o estrelato. Seus papéis nos anos 40, resvalaram para o elitismo, mas ela caminhou para personagens mais duros na década seguinte, às vezes corrompidos, dirigida por mestres como Nicholas Ray, Fritz Lang, George Stevens, Anthony Mann e Robert Rossen. Teve diversos maridos, entre eles o ator Brian Aherne. Fez sucesso também na Broadway, com Chá e Simpatia, ao lado de Anthony Perkins. 

Nascido em Marselha, 1921, Louis Jourdan esteve em atividade no cinema por seis décadas, estreando em 1939. Na Segunda Guerra juntou-se à Resistência Francesa. Contratado por David O. Selznick, lançou-se em Hollywood no fracassado “Agonia de Amor / The Paradine Case” (1947), de Alfred Hitchcock. O auge de sua carreira foi nos anos cinqüenta, com êxitos como “A Fonte dos Desejos / Three Coins in the Fountain”(1954), com Jean Peters; Julie /Idem (1956), com Doris Day; O Cisne / The Swan (1956), com Grace Kelly, e Gigi / Idem” (1958), com Leslie Caron. Atuou também na Broadway e na televisão. Nos anos 70, sua carreira enfrentou dificuldades, só se recuperando em 1983 como o vilão de 007 Contra Octopussy / Octopussy. Despediu-se das telas em 1992.


CARTA de uma DESCONHECIDA 
(Letter From an Unknown Woman, 1948)

País: EUA; Duração: 87 mins.; P & B; Produção: John Houseman; (Rampart Production); Direção: Max Ophuls; Roteiro: Howard Koch, adaptado do romance de Stefan Zweig; Fotografia: Frank Planer; Edição: Ted J. Kent; Música: Daniele Amfitheatrof; Cenografia: Alexander Golitzen (d.a.); Russell A. Gausman e Ruby R. Levitt (déc.); Vestuário: Travis Banton; Elenco: Joan Fontaine (“Lisa”), Louis Jourdan (“Stephan Brand”), Mady Christians, Marcel Journet, Art Smith e Carol Yorke.

Nota: ***** (ótimo)

29 comentários:

Unknown disse...

De fato...tantos amigos que pensei que nunca viveria sem...hj parecem mais meros conhecidos....
ADOREII A DICA DO FILMEE hehe

XEROOOOOOOOOO

Hugo disse...

Não conhecia este filme e pelo menos a premissa é interessante.

Abraço

Victor Ramos (Jerome) disse...

Muito bom, Antônio. Preciso ver mais coisas do Ophüls... obrigatório. E não sei pq, mas o perfil de Otto Preminger me lembra muito ele, rsrs.

Injeção Cinéfila

Fábio Henrique Carmo disse...

Eu tenho e esse filme em casa e ainda não vi... É, eu sei, lamentável mesmo. Preciso corrigir isso com o máximo de urgência!

Bete Nunes disse...

Olha, fiquei hiper mega blaster curiosa para ver esse filme depois desses textos. Mas, Antonio, da próxima vez, não conta o final não, tá?... Você contou que o galã morre no final... Ai, ai... (rs)



Abraço pra você.

Luiz Santiago (Plano Crítico) disse...

Adoro esse filme! Muito bom. Parabéns, amigo.

linezinha disse...

Não conhecia esse filme e muito pouco o Max Ophuls, pretendo conhecer seus filmes em breve. Apesar de eu achar o Louis Jourdan um dos canastrões do cinema como até o Antonio já citou aqui num post acho ele tão charmoso e a Joan Fontaine considero uma excelente atriz ela tinha uma força em suas atuações como sua irmã. Abç

As Tertulías disse...

Antonio, o filme chama-se "Calling Heddy Lamarr" (2004) de Georg Misch!!!! Uma maravilha!!!!

Voce viu
http://tertulhas.blogspot.com/2011/04/carta-de-uma-mulher-desconhecida-1948.html
????????????????

Minha "visao" deste filme/livro...
Comente....seria interessante saber o que pensa!!!!

Darci Fonseca disse...

Nahud, Pauline Kael era cruelmente fascinante. O comentário dela é primoroso. Quem era mais chatinha, Joan ou Olivia? Abraço - Darci Fonseca/CINEWESTERNMANIA

Rato disse...

Nota máxima, Nahud? Preciso de ver, até porque nunca ouvi falar deste filme, e Max Ophuls não me seduz po aí além. Pelo menos o pouco que conheço.

O Rato Cinéfilo

Enaldo Soares disse...

Fiquei vivamente interessado no filme e Stephan Zweig era um grande escritor, e esquecido dos acadêmicos de Literatura brasileira.

Tunin disse...

Nunca ouvi falar desse filme. Despertou a curiosidade.
Abraços.

João Roque disse...

Não conhecia o filme, mas só o nome do realizador o recomendaria...
Ao invés, penso que Louis Jordan foi um péssimo actor, socorrendo-se apenas dos seus atributos físicos para ter algum (relativo) sucesso.

Rodrigo Mendes disse...

Bela contextualização Antonio. ótimas curiosidades. Provavelmente o melhor filme de Koch (claro que ter ajudado a escrever Casablanca supera qualquer trabalho posterior) e do Ophüls só assisti este.
Joan Fontaine esta inspirada aqui, embora eu prefira ela em "Suspeita" e "Rebecca". Com Hitch ela foi mais feliz!

Abs.

Gustavo Guideroli disse...

Seu blog é ótimo, meus parabéns!

M. disse...

Antonio, preciso ver este filme! Tão competentemente postado aqui. Abraço.

Renato Oliveira disse...

Maravilhoso!!! assisti faz cerca de um mês. Uma obra que nos suscita realmente um sentimento de veracidade nas ações e propósitos dela! Abraços ;)

Unknown disse...

Filme lindo... com aquele gosto de luto romÂntico implacável!! Até acho que é um tantinho demais sentimental, mas, não deixa de encantar e levar para um lado sombrio do amor.

Ótima lembrança!

;D

Marcelo Castro Moraes disse...

To devendo a mim mesmo em ver esse filme. Correr atrás

Jefferson C. Vendrame disse...

Esse filme é incrível, demorei em adquiri-lo pois sempre foi difícil encontra-lo. Ótimo texto, realmente incentiva bastante aqueles que ainda não viram...

Abração

Rafa Amaral disse...

Olá amigo Falcão. Não sei se já sabe, mas acabo de estrear um site de cinema: http://cinemavelho.com. Gostaria que você alterasse o link aqui: retire o saudadesdobomcinema e coloque o novo, até porque tudo do velho está no novo e muito mais. Ainda estou em fase de transição e mudanças.

Aproveito para lhe fazer um convite: você toparia me dar uma entrevista (via e-mail) para o novo site? Fico no aguardo de seu retorno. Abraços! (me passe seu e-mail).

Dilberto L. Rosa disse...

Desconheço o trabalho deste diretor,meu caro e, da forma como descreves, lembra mesmo o Luchino Visconti de "Rocco e Seus Irmãos" e de "O Leopardo", um esteta em fotografia e requinte de cenas para narrar melodramáticas cenas de dramas cotidianos! Vou procurá-lo já!

E, sim, cartas nos inspiram: coincidência ou a pretensão poética da postagem dos Morcegos te fez lembrar deste pequeno clássico?!

Meu abraço!

Sonja disse...

Vi esse filme em 1965 e nunca o esqueci. Maravilhoso mesmo....Abs.

Suzane Weck disse...

Ola Falcão,preciso ver este filme com urgência,pois como sou casada com um pianista,nunca "se sabe".....A tua postagem está excelente ,aliás como sempre. Os comentários excluidos foram meus,fiz uma tremenda confusão ao escrever e ainda por cima ficaram duplos.Desculpe,Fica por conta do calor que aqui em P.Alegre esta demais e minha cabeça quase pega fogo.Abração.

Rubi disse...

Ainda não conhecia este filme Antonio! Que elenco, não? Adoro Fontaine, assim como a irmã, ela era bonita e talentosa.

HENRIQUE WAGNER disse...

Eu adoro Max Ophuls e esse filme, baseado num conto/novela de Zweig, está entre os meus prediletos dele. Li o conto e fiquei encantado. Mas o filme, com Fontaine e Louis Jourdan - esse rapaz teve carreira bem irregular, o que é uma pena, pois era bom ator -, é quase superior à obra do autor austríaco.
Abç.
H.

Henrique Wagner disse...

Acabei de ler o texto, Antonio. Mas que texto! Que limpidez, a da sua escrita, que eficiência, sem jamais se limitar à reportagem, apenas. Eu gosto muito de Max Ophuls, de suas famosas movimentações de câmera, seus temas, seus enquadramentos, sua relação com a literatura. Eu não acho que o Louis Jourdan seja mal ator... Certamente não é um grande ator, mas já vi filmes em que ela estava bem. O problema mesmo foi, na minha opinião, ele ter feito alguns filmes muito fracos.
abç.

Henrique Wagner disse...

Preciso ainda registrar que, para mim, Antonio Júnior é quem melhor escreve sobre cinema, atualmente. Sim, há os velhos mestres, ainda vivos. Mas eu me refiro à turma, imensa, que está escrevendo sobre cinema na internet. Antonio Júnior não é um fenômeno da internet. Ele sempre escreveu para grandes jornais brasileiros. Mas com esse blog o espaço é maior e ele vem mostrando sua impressionante capacidade de informar com inteligência, sem jargões, sem filosofias - aquela coisa chata de falar em técnica o tempo todo, para mostrar serviço - mas com a profunidade bem dosada. Jornalismo cultural como bem o queriam os mestres americanos...

Rodrigo Duarte disse...

Infelizmente, é o único filme que vi de Ophuls. Não me recordo do nível das interpretações, mas se não estão tão boas assim, imagino o que seria do filme se estivessem.
Abraço.