fevereiro 01, 2011

********** EDGARD NAVARRO, o INDOMÁVEL


edgard navarro


O baiano EDGARD NAVARRO começou sua carreira na década de 1970, filmando curtas e médias-metragens, com os quais ganhou prêmios importantes, se tornando uma das promessas do cinema brasileiro. Os seus filmes dessa época caracterizam-se pela irreverência e por um humor iconoclasta, cáustico e provocativo, sendo o mais conhecido, o mítico média-metragem “Superoutro” (1987/89), sobre um louco de rua que tenta se libertar da miséria através da sua imaginação alucinada. No entanto, somente em 2005 o diretor conseguiria realizar seu primeiro longa-metragem, o delicado e nostálgico Eu Me Lembro”, que arrebatou nada menos que sete prêmios Candango no Festival de Brasília. Atualmente, aos 62 anos, finaliza “O Homem Que Não Dormia”, filmado em Igatú, na Chapada Diamantina, com um elenco de preciosidades da cena teatral baiana. Nesta entrevista exclusiva, ele fala com sua habitual honestidade.

ATÉ QUE PONTO A REPERCUSSÃO DE SEUS IRREVERENTES CURTAS E MÉDIA-METRAGENS DOS ANOS 70 INFLUI NO SEU TRABALHO HOJE?

Pra mim, vida e arte sempre foram muito integradas, uma sendo a extensão da outra. Então, minha irreverência juvenil continua em mim, o que mudou foi a atitude, acho que porque a gente amadurece e aprende a lidar melhor com a energia da deflagração, do escândalo, do ouriço... Acho que continua vivendo em mim um enfant terrible pronto pra dar o bote; ninguém o consegue domar, mas eu tento e às vezes consigo; isso me ajudou muito, permitiu que suportasse a parte chata e os processos todos que envolvem fazer filmes.

VOCÊ ACREDITA NO CINEMA AUTORAL?

prêmio candago em 1985
Claro! Não fosse assim não teria feito os filmes que fiz, todos eles autorais. Acho que é o grande diferencial, por conter aquele algo mais que nos salva da mesmice e da mediocridade da indústria do entretenimento, que quase sempre visa apenas o sucesso comercial; acontece, então, que o cinema que aponta para um espaço da natureza humana que ambiciona algo além do senso comum fica sedento e morre à míngua. O cinema de autor existe pra atender a espectadores que estão saturados das fórmulas manjadas e narrativas repetitivas; aqueles que querem de um filme mais do que simples entretenimento; aqueles que, como todos, querem e precisam, sim, realizar a função catártica da arte dramática e também o fazem através do velho e insubstituível binômio aristotélico – terror e piedade. Mas para isso carecem de narrativas não convencionais.

QUAIS AS SUAS REFERÊNCIAS NO CINEMA BRASILEIRO?

Glauber, desde sempre; o cinema novo, como um todo; atualmente, além de Walter Salles e Fernando Meirelles (os mais bem sucedidos comercialmente), cito Carlão Reichenbach, Andrea Tonacci, Eduardo Coutinho, Sílvio Tendler; entre os mais recentes cito Beto Brant, Marcelo Gomes, Karim Ainouz, Lírio Ferreira, Claudio Assis, João Moreira Salles, Cao Guimarães... a lista é grande.

COMO FOI A EXPERIÊNCIA COM EU ME LEMBRO?

Acho a pergunta um tanto vaga; mas se você quer se referir à experiência como processo em si, digo que foi das mais valiosas e enriquecedoras pra meu crescimento tanto como artista quanto como pessoa, considerando-se que eu estava lidando ao mesmo tempo com decisões e procedimentos puramente técnicos e, por outro lado, com emoções e memórias que estavam muito perto de mim (não foram poucas as vezes que chorei no set de filmagem, tal o grau de envolvimento com a matéria do filme).

NAS DUAS VEZES EM QUE ASSISTI EU ME LEMBRO, NOTEI QUE O PÚBLICO SE MANIFESTAVA COM GARGALHADAS EM DETERMINADAS CENAS. NORMALMENTE ESPERA ESSA INTERAÇÃO COM A PLATÉIA? O SEU HUMOR É CALCULADO, VEM DO DESPUDOR DOS PERSONAGENS?

dirigindo “superoutro”
Digo que boa parte do humor é calculado, sim; mas muitas vezes sou surpreendido pela reação da platéia; parece que eles alcançam um sentido que eu próprio não imaginei que alcançariam; isso me ensina muito sobre a dramaturgia aplicada e a que tenciono aplicar em próximos roteiros, além de me causar grande prazer. Acho que não há prazer maior do que ver uma platéia às gargalhadas com aquilo que você arquitetou. Acrescento que quase nunca isso se apóia no despudor de personagens; esse recurso nunca deve ser utilizado gratuitamente, senão inteiramente contextualizado, pra que cumpra sua função de esclarecimento, reflexão e riso redentor.

“EU ME LEMBRO TEM MUITO DE AMARCORD. JÁ SEGUNDO ALGUNS CRÍTICOS, O NOVO FILME DE JABOR, A SUPREMA FELICIDADE, TEM MUITO DE EU ME LEMBRO. É TUDO VERDADE?

No próprio titulo, “Eu Me Lembro” já se constitui uma homenagem a Fellini; procurei trilhar meu próprio caminho, entretanto, pra que aquilo que pretendia ser um tributo artístico ao grande cineasta italiano não se tornasse um pastiche sem valor. Quanto a “A Suprema Felicidade”, li trechos de algumas críticas que fazem referência à semelhança com nosso filme. Concordo que existem pontos de contato inegáveis, mas não sei se Jabor chegou a ver o “Eu Me Lembro” antes de realizar seu filme. Minha opinião sobre isso é que num filme de memórias pessoais (o que é o caso de ambos) podem ocorrer inúmeras coincidências de situações pelas quais muitos de nós passamos na infância ou adolescência, com pequenas diferenças de cor local; pode ter acontecido exatamente isso com Jabor. De resto, tenho a dizer que acho o filme dele muito bem realizado e, mais importante - sincero; e por isso, em se tratando dele, comovente. Parece que Jabor reservou o espaço do cinema, de onde esteve afastado por tanto tempo, pra o sagrado exercício de sua verdade mais cara. Acho louvável em todos os sentidos que ele, de ordinário tão irônico e esperto (esperto aqui querendo também significar escroto - como se um movimento de genuína bondade do coração fosse coisa de otário, como se fosse imperioso ‘manter a sua fama de mau’ – coisa de uma geração de machistas empedernidos a la Erasmo Carlos), tenha se despido e se rasgado o coração (pra citar o Choro 10 de Villa-Lobos como trilha sonora da cena mais tocante do filme, a meu ver), entregando-o de forma honesta, sem cinismo. Ou me engano? Será que você conseguiu me enganar, velho? Porque, mesmo nos muitos momentos em que prevalece certo clima de sacanagem entre os adolescentes, o filme deixa entrever alma generosa e honesta. Em se tratando de um pavão como Jabor, vitimado pela síndrome da importância pessoal de que fala o Don Juan de Castañeda, um surto de sinceridade não é pouca coisa e deve ser mencionado sempre que possível, seja como estímulo pra que ele deixe de cultivar essa imagem de f*iladap&t* contumaz, mefistofélico, de homem sardônico, mal acostumado! Pra que se torne menos escroto, mais amável. Porque, do contrário, vamo combinar: não dá pra acreditar quando ele resolver tocar o espaço sagrado e tentar, através do cinema, o exercício daquela verdade tão cara, né mesmo? Aqui cabe perguntar ao próprio Jabor: é tudo verdade, cara? Se não for, a quem você pensa que está enganando, senão a si mesmo? É bom lembrar que Ibope nenhum salva ninguém do inferno que vem de dentro.

DE QUE SE TRATA SEU NOVO PROJETO DE CINEMA, O HOMEM QUE NÃO DORMIA?

no set de “o homem que não dormia”
 “O Homem Que Não Dormia” é um conto de fadas pra adultos, um filme cuja aura de poder se colocou pra mim há mais de 30 anos, querendo ser o diamante eterno de meu espírito tornado alma penada por algum carma inconsciente – inspirou-me, entre outros – Jung. A redenção é o que se anuncia, o livrar-se do peso, zerar o carma, encontrar o condão admirável da alegria de viver – maior tesouro da vida. Esse filme não se explica, afinal, e cada vez que eu tento falar sobre ele termino dizendo uma coisa diferente da outra. Quer que eu diga numa só palavra? Pois esse filme é um Mistério – inclusive pra mim.


Entrevista por ANTONIO NAHUD

FILMOGRAFIA de NAVARRO


Alice no País das Mil Novilhas (1976)
O Rei do Cagaço (1977)
Exposed (1978)
Lin e Katazan (1979)
Na Bahia Ninguém Fica em Pé (1980)
Porta de Fogo (1982/84)
Lin e Katazan (1986)
Superoutro (1987/89)
A Voz do Brasil (1992)
Talento Demais (1995)
O Papel das Flores (1999)
Eu Me Lembro (2005)
O Homem Que Não Dormia (2011)

navarro e luiz paulino 
em “o homem que não dormia”

8 comentários:

O Neto do Herculano disse...

Na expectativa para "O Homem que não dormia".

Edelzio Sanches disse...

Muito bom
Gostei
Abração
Edelzio Sanches

Luiz Santiago (Plano Crítico) disse...

Rapaz! Vi "Superoutro" esses dias, pérola encontrada no Acervo Nacional. E agora essa entrevista. UAU! Que maravilha!

Rita Santana disse...

Bela entrevista! Edgard está lindo na foto de abertura da matéria. Fico feliz por ter você aqui no Brasil, dialogando diretamente conosco, com o nosso universo cultural e artístico. Que venham outras tantas entrevistas e invenções, Antônio! beijos! Rita Santana

Leandro Afonso Guimarães disse...

"É bom lembrar que Ibope nenhum salva ninguém do inferno que vem de dentro" é um aforismo monumental, digno de gênio, digno de artista que resume aí a pergunta do "você faz os filmes para você ou para o público?".

Com relação A SUPREMA FELICIDADE, embora tenha sido triste a postura de Jabor pós-críticas, também gostei. Bom vê-lo filmando, bom ver o resultado de alguém cujo filme me soa honesto.

Grande abraço, Antonio.

Kley disse...

Antonio, voce se supera a cada dia que passa. Impressionante.
Você poderia, quando puder, fazer um especial sobre o Valerio Zurlini? Um dos grande diretores do cinema italiano.
Um grande abraço!

Luiza Maria disse...

Muito legal a entrevista com Navarro: entrevistado e entrevistador.
Amo cinema de autor.
Lou

Faroeste disse...

Conheço quase nada do Navarro. No entanto vi Eu Me Lembro. Gostei demais e até recomendei a outros. Mas se o Navarro tem como referencia o horrivel Glauber Rocha...Jesus!!!
De qualquer forma é apenas refer. O que o Navarro tem feito parece estar muito distante do alienado cineasta bahiano.
jurandir_lima@bol.com.br