Descendente
de um clã de samurais, AKIRA KUROSAWA (1910 - 1998) trabalhou na juventude como ilustrador
de revistas, desenhando anúncios publicitários. Em 1936, iniciou a carreira
cinematográfica como roteirista
e assistente de direção, até dirigir, em 1943, “A Saga do Judô / Sugata Sanshiro”.
O sucesso se dá com um emblemático filme de época: “Rashomon” (1950), levando o
Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e impulsionando de maneira arrebatadora o
ofício do cineasta. Filme divisor de águas do cinema japonês. Até vencer o
Festival de Veneza de 1951, o Japão era uma nação exótica para o Ocidente. Foi ele quem abriu as
portas para o cinema e, por que não, para a cultura do país. Nesta obra admirável
e inovadora, brilha Toshiro Mifune, o rosto do cinema de Kurosawa. Considero o melhor filme do mestre.
toshiro mifune |
Tempos depois, quando Toshiro Mifune obteve consagração mundial por sua participação como Lord Yoshi Toranaga na minissérie televisiva “Shogun / Idem” (1980), uma co-produção Japão-EUA, comentários irônicos do diretor japonês gelaram ainda mais a relação. Uma espécie de “reconciliação” ocorreria em 1993, durante os funerais de um amigo comum, após tímida troca de olhares, os dois se abraçaram com olhos marejados. A intimidade, porém, nunca mais seria retomada. A história desse rompimento artístico e humano inspirou um livro, “The Emperor and the Wolf / O Imperador e o Lobo”, de Stuart Galbraith IV.
Oitavo
e último filho de uma família de classe média de Tóquio, AKIRA KUROSAWA estudou
artes plásticas e teve forte influência do irmão Heigo no gosto pela literatura
e cinema – ele era narrador de filmes mudos no começo do século passado, mas
com o advento dos filme sonoros, ficou desempregado e se suicidou, um episódio
que deixou marcas no diretor. Ele disse diversas vezes que foi muito influenciado por cineastas norte-americanos como John
Ford, William Wyler, Frank Capra, Howard Hawks e George Stevens. Chegou a citar
o italiano Michelangelo Antonioni, mas não como uma influência e sim como “um
diretor muito interessante”. No que diz respeito a influências japonesas lembra
enfaticamente Kenji Mizoguchi, dentre todos os seus conterrâneos. “Mizoguchi
cria um mundo puramente japonês”, afirmou Kurosawa.
toshiro mifune em “os sete samurais” |
Ainda na década de 1950, “Os Sete Samurais” (1954) popularizou mundialmente valentes samurais. É o título mais lembrado, citado e referenciado de AKIRA KUROSAWA, e viria a ser considerado por diversas publicações um dos 100 maiores filmes de todos os tempos. Três anos depois, ele adaptaria o denso “Macbeth”, de Shakespeare, que renasce no Japão feudal de maneira brilhante em “Trono Manchado de Sangue”. Em 1958, fez o vibrante “A Fortaleza Escondida”, inspiração de George Lucas em “Guerra nas Estrelas / Star Wars” (1977).
O grande sucesso
“Yojimbo - O Guarda-Costas / Yôjinbô” (1961) foi reproduzido como o clássico
faroeste “Por um Punhado de Dólares / Per Un Pugno di Dollari” (1964), de Sergio Leone. Aliás, esse
filme provocou um processo judicial por plágio movido e ganho por Kurosawa. Certa
vez perguntaram o que ele pensava das adaptações para faroeste de três de seus
filmes – além do já citado, “Sete Homens e Um Destino / Magnificent Seven” (1960), onde John Sturges
adaptou “Os Sete Samurais”; e “Quatro Confissões / The Outrage” (1964), quando Martin
Ritt se inspirou em “Rashomon”. O cineasta respondeu: “Eu não tenho nada contra
adaptações de meus filmes. Mas não acredito que possam ter êxito. O contexto
básico é muito distinto. Filmes
pastiche, de um tipo calculado, não podem nunca ser bons filmes... é, por
exemplo, ridículo me imaginar dirigindo um faroeste de Hollywood. Porque eu sou
japonês...”.
No final da década de 1960, Kurosawa foi para Hollywood realizar um projeto ambicioso: junto com a Fox lançaria um drama de guerra que
retrataria o ataque a Pearl Harbour tanto do ponto de vista japonês quanto do norte-americano.
Kurosawa escreveu um roteiro que teria 4 horas, e a Fox queria um filme de 90
minutos. Ele desistiu do projeto. O filme acabou saindo, dirigido por Richard Fleischer, Kinji Fukasaku e Toshio Matsuda, com o nome de “Tora! Tora! Tora! / Idem” (1970). Kurosawa, então, entrou
em uma crise emocional e criativa, que incluiria uma tentativa de suicídio.
Ele venceria pela segunda vez o Oscar de Melhor Filme
Estrangeiro. Desta vez, em 1975, com “Dersu Uzala”, exatos 25 anos após receber a mesma estatueta por “Rashomon”. É, sem dúvida, um dos seus mais belos filmes. Nos anos 1980,
George Lucas e Francis Ford Coppola acabariam co-produzindo dois de seus épicos, “Kagemusha – A Sombra de Um
Samurai / Kagemusha” (1980) e “Ran”
(1985). “Kagemusha - A
Sombra do Samurai” levou a Palma de Ouro em Cannes - prêmio dividido com “O
Show Deve Continuar / All that Jazz” (1979), de Bob Fosse. Com “Ran”, voltaria a recriar Shakespeare.
Uma obra grandiosa, que levou mais de 10 anos para ser realizada e terminou por
ser indicada ao Oscar de Melhor Direção. O mestre elegeu “Ran” como a
“obra de sua vida”. Os
seus últimos filmes (“Sonhos / Dreams”, 1990; “Rapsódia em Agosto / Hachi-gatsu no kyôshikyoku”, 1991; e
“Madadayo / Idem”, 1993) são pinceladas intimistas sobre o tempo, a maturidade e a morte.
Se
hoje em dia temos a oportunidade de conhecer a cinematografia oriental, o maior
responsável é AKIRA KUROSAWA. Ele abriu as portas do Japão para o mundo, revelando outros importantes cineastas há muito na ativa (Yasujiro Ozu, Kenji
Mizoguchi etc.). Curiosamente, os seus filmes sempre fizeram mais sucesso no
mundo ocidental do que no seu país natal, onde os críticos viam seu estilo único forjado
em westerns (ele tem muito de John Ford, e também de “Os Brutos
Também Amam / Shane”, de George Stevens) e na obra de grandes escritores europeus. Kurosawa
transcendeu gêneros, épocas e nacionalidades, mas nunca deixou em segundo plano
sua própria cultura, isso é percebido na movimentação dos atores, em sua
obsessão por cenários autênticos e na influência do teatro Nô e Kabuki.
george lucas, kurosawa e steven spielberg |
Uma das
características mais associadas ao seu perfil é o de ser perfeccionista e
minucioso. Seu perfeccionismo (reconstruiu até castelos que foram queimados em cenas) estava ligado justamente ao fato de participar
de todas as etapas do processo de realização de um filme. Ele não
apenas dirigia, mas também escrevia o roteiro, desenhava os personagens e as
cenas de batalha - que servia como storyboard na rodagem -, ajudava na fotografia e no posicionamento da
câmera.
A
linguagem cinematográfica de AKIRA KUROSAWA está profundamente interligada ao
sentimento humano. Em seus filmes, o componente reflexivo, sempre está
presente, focalizando o homem frente às escolhas éticas e morais. Clássico na
forma e romântico na essência, eclético e denso, fundiu a alma japonesa e os
valores universais, subordinando o ideal humanista à beleza que jorra em
imagens esplêndidas criadas com notável senso plástico. Além de ser um dos
melhores cineastas de seu país, influenciou - e influencia até hoje - a
produção cinematográfica em todo o mundo. Considerado pela revista “Entertainment Weekly” como o 6º maior diretor de sempre, em 1990 recebeu da Academia um Oscar especial pelo conjunto da obra. O diretor ainda viveu bons momentos até seu último e póstumo filme, “Depois da Chuva / Ame Agaru”, de 1999, que foi terminado por seu discípulo Takashi Koizumi. Ele jamais se aposentou. Conviveu até seus últimos dias com o cinema.
mieko arada em “ran” |
TOP 10 KUROSAWA
(por ordem de preferência)
01
RASHOMON
Um
estupro e um assassinato através de várias narrativas, partindo da lembrança de
quatro testemunhas: o bandido, o samurai assassinado, a esposa do samurai e um
lenhador. Refilmado em
1964 como “Quatro Confissões”, com Paul Newman, Laurence
Harvey, Claire Bloom e Edward G. Robinson.
02
TRONO MANCHADO de SANGUE
(Kumonosu-jô, 1957)
Dois
samurais têm uma visão de uma bruxa no meio de uma floresta. Depois que ela
profetiza um ambicioso futuro para um deles, tomam atitudes que fazem com que o
que foi profetizado se torne realidade, não importando o sangue
derramado.
03
DERSU UZALA
(Idem, 1975)
Velho caçador guia um explorador russo em uma missão pela floresta.
Quando se reencontram, tempos depois, o explorador decide levá-lo para sua casa
e cuidar dele, mas este sofre um forte impacto entre os padrões de
vida da cidade e das montanhas.
04
A FORTALEZA ESCONDIDA
(Kakushi-toride no San-akunin, 1958)
Um
poderoso homem escolta uma princesa fugitiva, em pleno território inimigo, com
a ajuda de dois medrosos desertores da guerra.
05
VIVER
(Ikiru, 1952)
Um
idoso burocrata descobre que tem câncer de estômago, em estágio terminal, e
utiliza os últimos dias de sua vida vazia para viver intensamente, tentando
também tornar melhor a existência dos outros.
06
Os SETE SAMURAIS
(Shichinin no Samurai, 1954)
Uma
humilde aldeia precisa se defender de ataques de bandidos. Seus moradores contratam ronins (samurais que não servem a um amo) para ensiná-los a
guerrear. Maravilhoso do
início ao fim, gerou uma refilmagem no faroeste, “Sete Homens e um
Destino”, um clássico com Steve McQueen, Yul Brynner e Charles
Bronson.
07
HOMEM MAU DORME BEM
(Warui Yatsu Hodo Yoku Nemuru, 1951)
No
Japão do pós-guerra, jovem tenta se utilizar de sua posição numa empresa corrupta para investigar e expor os responsáveis pela suposto assassinato de seu pai. Obra-prima,
um roteiro elegante e a bela música de Sato.
08
RAN
Chefe
da família, já velho, decide dividir seus preciosos bens entre os três filhos,
gerando uma sangrenta batalha entre eles.
09
RALÉ
(Donzoko, 1957)
Numa
miserável pensão, com diversificados hóspedes, um triângulo amoroso se forma
entre o dono da pensão, sua irmã e um ladrão.
10
CÃO DANADO
(Nora Inu, 1949)
Detetive perde a pistola e roda por toda
Tóquio em seu encalço. A partir daí, a busca pela arma torna-se uma busca por si mesmo.
No processo, acaba se identificando com o universo marginal. O filme denuncia o enfraquecido mundo do Japão
pós-guerra, bem como a natureza de uma mente criminosa.
STORYBOARDS de KUROSAWA
FONTES
BAZIN,
André. O Cinema da Crueldade. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
GALBRAITH IV, Stuart. O Imperador e o Lobo.
RICHIE, Donald. The Films of Akira Kurosawa. Los Angeles: University of California Press, 3ª ed., 1996.
RICHIE, Donald. The Films of Akira Kurosawa. Los Angeles: University of California Press, 3ª ed., 1996.
TESSON,
Charles. Akira Kurosawa. Paris: Le Monde/Cahiers du Cinéma, Collection Grandes
Cinéastes, 2007.
29 comentários:
Ran, outra obra - prima do mestre Kurosawa.
Os filmes com a temática japonesa têm uma sensibilidade, uma linguagem poética que expressa bem essa cultura tão rica!!
Um senhor artista.
Gênio
Dersu Uzala
Kurosawa é transcendência. A imaginação criadora própria do corpo de afetos. O seu blog, Nahud, faz nascer o sonho. Verdadeiros posts seminais.
Concordo
Um blog muito interessante e interativo
Já recomendei
caro "Falcão Maltês", desde há uns anos que visito o seu site, pelo facto de ter sido estudante de cinema e de ser apaixonado por cinema clássico norte-americano. Tal como o falcão, sou apaixonado pela Lana Turner. O seu site, o "50 anos de filmes" de Sérgio Vaz e o "Rato Cinéfilo" são so meus sites favoritos de cinema.
Tinha um post seu sobre a Hedy lamarr que queria ler novamente mas já n está online. O post que mais gosto do seu blog é aquele que aborda a rivalidade ente a Olivia e a Joan.
Pode visitar o meu (alguns posts estão em inglês mas a maioria em português)
http://hollywoodsonhos.blogspot.pt
Os filmes do Kurosawa também serviram de influência para várias obras hollywoodianas famosas, como por exemplo, Star Wars, que baseou os personagens R2D2 e C3PO em dois personagens do filme "Fortaleza escondida" Emoticon grin Emoticon heart
Assisti a excelentes filmes desse Mestre!
Inesquecivel. Obrigada Sam
Acabei de assistir Um filme dele no canal arte 1 Kagemusha
Kagemusha é espetacular! Um dos meus prediletos!
Sete Samurais! Chorei tres vezes! Céu e Inferno, arrastado, mas interessantíssimo! VIVER... inesquecível!!! Dodeskaden... Tantos!!!!!!!
Nunca me detive muito no Kurosawa. Mas o Rashomon deu uma contribuição à Literatura. É sempre citado quando acontece um acidente, um incidente, digamos, e muitos estavam presente. Daí a polícia, as autoridades, enfim, gente que não estava lá no momento do sinistro, quer ouvir dos que estiveram. E cada um conta uma versão diferente. E isso remete a Rsshomon, que meio assim: cada um tem sua versão da história.
Dersu Uzalu é uma beleza, inesquecível.
Excelente matéria.
Sempre que lembro dele retomo em minha memória o filme Sonhos, que linda viagem surrealista que provoca uma sensação de êxtase e delírio. Amo.
máximo respeito.
Cinema de outrora,vendo uma crítica,no estadão, falando, de um filme japonês, que estava sendo exibido, no cine,jóia,fui ver,o dito cujo, uma fila enorme, O Filme, O Castelo de Osaka, com Toshiro Mifune,isso nos anos 60.
Bela escolha , Antônio
Gênio!
Genial!
Admiro muito!!!
Adoro!
gosto de Sanjuro... e de Tatsuya Nakadai
Procuro dois filmes japoneses que foram proibidos pela censura no início dos anos 60; MORTE À FERA e A FERA AZUL, ambos com Tatsuya Nakadai....se alguém tiver, compro uma cópia.
Só assisti a Dersu Uzala. Gostei! "Os Sete Samurais" ficou pela metade, não consegui chegar ao final (nem me lembro mais por qual motivo! )
Excelente artigo que fez jus ao magnífico Kurosawa. Assim como você, também considero Rashomon o melhor filme do diretor.
Abraços!
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