outubro 27, 2011

****************** SALA VIP: “AMARGO PESADELO”

burt reynolds e jon voigt


Não há heróis nesta história. Nem mesmo o formoso rio Cahulawassee, que está prestes a ser extinto em nome do progresso, devido a construção de uma gigantesca represa. A sua violência natural é tão assustadora e crescente que aniquila qualquer identificação com o espectador. Burt Reynolds, marcado por papéis heróicos, desta vez é um inconformado se rebelando contra a vida moderna, mas não encontra saída na sua própria imprudência (situação parecida vivida por Robert De Niro em “Taxi Driver / Idem”, 1976, e Edward Norton em “Clube da Luta / Fight Club”, 1999). É dele a ideia da aventura selvagem. “Não há riscos”, garante. Seus três amigos ingênuos e conformados com a domesticação capitalista, mesmo não tão ansiosos em relação ao perigo, topam a suposta diversão. A intenção deles é descer de canoa as corredeiras do arrebatado rio e acampar nas encostas, num fim de semana em contato com a natureza. Jamais imaginariam que trilhariam o caminho das trevas, sendo agredidos e ameaçados.

cox, voight, beatty e reynolds
billy redden

O argumento de AMARGO PESADELO se centra nesses quatro amigos suburbanos, de classe média. Lewis (o canastrão Burt Reynolds, no auge de sua exuberância sexual) é o valentão audacioso; Ed (Jon Voight), o sujeito tranqüilo, certinho e inseguro; Bobby (Ned Beatty), o típico gorducho fanfarrão, algo estúpido; e, por fim, Drew (Ronny Cox), músico sensível repleto de princípios e moralidade. No início, parece uma aventura corriqueira com homens desafiando águas furiosas, mas a adrenalina pueril se transforma num desafio pela sobrevivência, resultando em sequelas morais e emocionais. Nenhum deles jamais será o mesmo depois dessa estranha façanha. O roteiro sólido e simples, que beira a perfeição, cresce ao retratar personagens de personalidades contrastantes, que, diante de contratempos, reage cada um ao seu modo, com julgamentos, escolhas e sentenças particulares.


voigt e cox

Com certeza, um dos melhores e mais excitantes filmes que vi este ano. Um clássico imune à passagem do tempo, porque vai ao encontro dos medos alojados nos nossos subconscientes. Está repleto de momentos de impacto, como aquele em que Ed e Bobby se encontram na floresta com dois caipiras irracionais - que molestam sexualmente um deles (uma cena espantosa, censurada nos cinemas, mas felizmente liberada em DVD) - ou o duelo de banjos entre Drew e um garoto autista. São cenas fortíssimas, difíceis de tirar da cabeça. Através de uma atmosfera aterrorizante (um dos grandes trunfos da obra), John Boorman deixa claro que o homem por mais que reinvente o mundo por meio da tecnologia, a discutível segurança da cidade perde-se quando se tem de sobreviver contra as forças da natureza e dos instintos dos seres mais próximos de suas raízes. Diretor de longas marcantes como “Inferno no Pacífico / Hell in the Pacif” (1968), “Excalibur / Idem” (1981) e “Esperança e Glória / Hope and Glory” (1987), o inglês Boorman tem em AMARGO PESADELO o melhor momento de sua carreira. Entre os competentes atores, destacam-se Jon Voight, personificando com realismo o sujeito civilizado obrigado a se tornar um bárbaro para reagir à violência com mais violência, e Ned Beatty, estreando no cinema.

jon voight
jon voigt

Filme-irmão de outra obra espetacular dos anos 1970, sobre confrontos violentos entre caipiras e forasteiros da cidade (“Sob o Domínio do Medo / Straws Dog”, 1971, de Sam Peckinpah), essa produção de baixo orçamento - US$ 2 milhões - parece jogar na cara do espectador a pergunta “E se fosse com você?”. E não é para menos, os eventos fictícios poderiam acontecer com qualquer um, pois isoladas e acuadas as pessoas certamente podem chegar ao nível de selvageria dos protagonistas. Escrito por James Dickey, aborda também o conflito que o progresso gera. Neste caso em especial, é como se a chegada de figuras urbanas representasse o fim da rotina que aqueles nativos se acostumaram a viver, algo ilustrado no próprio rio, que antes servia para a pesca e a recreação, e agora passaria a gerar energi. 

A ironia é que a amada natureza revelaria uma face igualmente agressiva para todos eles, resultando em um espetáculo cinematográfico inesquecível, com uma direção de fotografia fascinante de Vilmos Zsigmond (Espantalho / Scarecrow, 1973; O Franco Atirador / The Deer Hunter, 1978; Dália Negra / The Black Dahlia, 2006, etc.) - realçando o caráter sinistro e ameaçador da paisagem através do uso de sombras e tonalidades verde-escuras - e uma trama de pesadelos, cheia de suspense, mostrando a ilimitada perversidade humana. Durante duas horas, somos sugados por essa história tensa, repleta de aventura, é verdade, mas com muito mais a dizer do que podíamos imaginar, explorando a fina fronteira que nos separa dos animais. 

a cena do estupro
ned beatty

CURIOSIDADES

Sam Peckinpah queria dirigir o filme, mas John Boorman conseguiu os direitos de filmagem em primeiro lugar;

Boorman convidou Lee Marvin e Marlon Brando para interpretarem Ed e Lewis, respectivamente. Depois de ler o roteiro, Marvin afirmou que ele e Brando estavam velhos para este tipo de papel e sugeriu que fossem utilizados atores mais jovens;

Durante a subida de Ed pela pedra, Zsigmond utilizou um filtro azul para dar a sensação de que a ação se passa durante a noite, numa técnica conhecida como “Noite Americana”;

Para reduzir os custos de produção e dar maior realismo, os atores foram seus próprios dublês. Por exemplo, Jon Voight realmente subiu aquela encosta;

jon voigt e ed ramey

Com o mesmo intuito, os habitantes de locais próximos foram escalados nos papéis dos moradores da região retratada na história;

O autor do livro e também roteirista James Dickey aparece em uma ponta como o xerife;

Burt Reynolds quebrou seu cóccix enquanto filmava cenas nas corredeiras;

Billy Redden (o garoto com o banjo) não sabia tocar banjo e foi incapaz de fingir convincentemente, então outro jovem permaneceu escondido atrás de sua cadeira com a tarefa de manusear o instrumento;

burt reynolds

Ned Beatty era o único dos quatro atores principais que sabia remar uma canoa antes das filmagens. Os demais aprenderam no set;

O duelo de banjos foi a primeira cena filmada. O resto do filme foi quase inteiro filmado em seqüência;

Rodado no rio Chattooga, que divide os estados da Carolina do Sul e Geórgia, no ano que se seguiu ao lançamento do filme, 31 pessoas se afogaram na tentativa de descer as corredeiras;

Um final alternativo foi rodado, mas cortado na edição final. Nele, um corpo é dragado do rio e mostrado aos três sobreviventes. O corpo nunca seria visto pelo espectador, que precisaria adivinhar a identidade do morto.

ned beatty, ed ramey, burt reynolds
 e jon voigt

AMARGO PESADELO
Deliverance
(1972)

País: EUA
Gênero: Drama
Duração: 110 mins.
Cor
Produção: John Boorman 
(Warner Bros. Pictures / Elmer Enterprises)
Direção: John Boorman
Roteiro: James Dickey
Adaptação do seu romance
Fotografia: Vilmos Zsigmond
Edição: Tom Priestley
Cenografia: Fred Harpman (d.a.); (déc.)
Vestuário: Bucky Rous
Elenco: Jon Voight (“Ed”), Burt Reynolds (“Lewis”),
Ned Beatty, Ronny Cox, Ed Ramey e Billy Redden

Nota: ***** (ótimo)


20 comentários:

Edison Eduarddo disse...

Antonio!!!
De passagem...
Boa blogada!
Não lembro de desejei PARABÉNS pelo aniversário do Falcão...
Reforça assim se já!!!
Abs, Edison Eduardo d:-)

Paulo Caires disse...

eu adorei este filme também

Unknown disse...

Filme marcante! Um dos primeiros da minha cinefilia e um dos mais inesqueciveis. TEnso ao extremo! Otimo texto. Abs

renatocinema disse...

Adoro filmes sem "heróis".

Preciso assistir urgente essa produção.

Sob o Domínio do Medo, que você citou......acho obra rara e perfeita.

Marcelo Castro Moraes disse...

Tai um clássico que ainda não vi, portanto estou devendo comigo mesmo. Os anos 70 foram fartos de muitos ótimos filmes, no qual, surgiu o movimento denominado “cinema novo”, liderados por gente nova, que hoje são grandes nomes do cinema como Steven Spielberg, George Lucas, Martin Scorsese, Brian De Palma, France Ford de Coppola e dentre outros.
Uma hora farei um cine especial sobre essa época, mas por enquanto, espero que esteja curtindo Antonio, meus especiais sobre Ingmar Bergman, e se der tudo certo, aguarde sobre um certo mestre do suspense.

Rato disse...

"Deliverance" ou "Fim de Semana Alucinante", como foi traduzido em Portugal. O filme estreou em versão integral em Moçambique (algo que era comum no tempo da ditadura, ou seja, filmes que eram cortados ou mesmo proibidos no continente, passavam sem qualquer censura nas então já chamadas de "províncias ultramarinas"), em Julho de 1973. Desde essa altura voltei a ele por várias vezes, pois foi algo que nunca mais me saíu da cabeça. E, escusado será dizer, o som de um banjo nunca mais soou da mesma maneira.

O Rato Cinéfilo

Pedro Ferreira de Freitas disse...

No roteiro original de Deliverance não constava a cena do garoto, que foi uma descoberta no local de filmagens. John Boorman resovleu na ultima hora adicionar a cena. Os parentes do garoto tb não são atores profissionais, sim moradores do local

Paulo Telles disse...

Recentemente, meu sogro fez menção deste filme em seu programa de rádio, devido a trilha sonora.

Assisti uma única vez este filme, me impactou tanto que não senti prazer em revê-lo, mas tratou de uma realidade pungente que até então o cinema americano não havia ousado.

Curioso que Burt Reynolds, que costumava ser um canastrão (e dos melhores), neste filme possivelmente lhe arrancaram seu único e melhor desempenho (também não se saiu mal em "Crime e paixão" com Catherine Deneuve).

Boa reminiscência, saudações.

Hugo disse...

Ótimo e completo texto sobre "Amargo Pesadelo".

John Boorman gosta da retratar as diferenças entre a vida urbana e a natureza através de conflitos. Além deste filme e do citado "Inferno no Pacífico", ele filmou também na Amazônia um longa chamado "A Floresta de Esmeraldas", trabalho praticamente esquecido nos dias de hoje.

Abraço

Felipe Rocha disse...

Ótimo filme!!!
Mto bom ver atores como John Voight colecionando ótimas atuações e ótimos filmes até hj!!

Apareça!!

Um abraço

disse...

Não conhecia Raul Roulien e sua trajetória. Obrigada pela rica informação!

Eddie Lancaster disse...

RAUL ROULIEN, SEM DÚVIDAS, É O MAIOR ATOR BRASILEIRO EM HOLLYWOOD. MORREU POBRE E ESQUECIDO, EM SÃO PAULO, NO BAIRRO DE SANTA CECÍLIA, NA RUA BRASÍLIO MACHADO, PERTO DO 1º CARTÓRIO DE NOTAS, NO QUAL TRABALHEI POR UM LONGO PERÍODO. INFELIZMENTE NÃO PUDE FAZER UMA VISITA, POIS SOMENTE DESCOBRI O ENDEREÇO DELE, APÓS A SUA MORTE...

Paulo Telles disse...

Li sobre RAUL ROULIEN, e confesso que não conhecia nem este artista e nem sua trajetória, sendo o primeiro de nossos patrícios há ingressarem em terras hollywoodianas.

O que é nefasto em tudo isso é do destino trágico que o interligou aos Hustons. Se de um lado a contribuição do pai e do filho para a Sétima Arte (e principalmente o filho, grande cineasta que viria a se tornar)foram de grande importância, por outro eles acabam se revelando verdadeiros crápulas.

Louis B. Mayer, apesar de reinar o maior estúdio de cinema das décadas de 1930/40/50, também não passava de um infeliz cheio de traumas que para se convencer de seu Poder controlava a vida e a alma de seus empregados, e até mesmo das grandes estrelas (como Judy Garland, cuja grande parte de seus traumas vinha de B. Mayer). Morreu sem deixar filhos e herdeiros, o que motivou uma série de confusões in posteriori na MGM.

Enquanto existirem pessoas esclarecidas, a memória de ícones como Raul Roulien não será apagada.

Edivaldo Martins disse...

INDEPENDENTE DE QUALQUER COISA, O DUELO DE BANJO É SENSACIONAL!

Gustavo disse...

Difícil crer que o mesmo Boorman que fez esse filmaço dirigiu o desastre O EXORCISTA 2...

Não sabia que Peckinpah queria dirigir.

Rodrigo Mendes disse...

O melhor filme de John Boorman, a sua obra prima. E somente um estúdio como a Warner para produzir algo do gênero.

Abs.

J. BRUNO disse...

Resenha brilhante, que faz jus à grandiosidade desta obra...
Assisti-o ainda na época da faculdade, ele era um dos t´tulos que tinha disponíveis para empréstimo na biblioteca. Fiquei com algumas cenas na mente durante dias depois de tê-lo visto...
Pode ser viagem minha, mas identifico neste longa diversas características que serviriam de influência para todo o cinema independente americano... Repare a semelhança entre ele e Inverno da Alma (2010) por exemplo...
.
http://sublimeirrealidade.blogspot.com/

E. SANCHES disse...

Amargo Pesadelo "Deliverance"
Este sempre tive em minha coleção.
Tenho a Trilha Sonora em LP Vinyl original com as performances de Billy Redden (The banjo´s man) e outros que fazem parte do disco.
É o melhor disco neste seguimento Country-Banjo de todos os tempos.

www.bangbangitaliana.blogspot.com

Rafa Amaral disse...

Olá Falcão! E vale lembrar que, um ano antes, Peckinpah dirigiu um filme cuja temática lembra essa obra-prima de Boorman: "Sob o Domínio do Medo", mas desta vez sobre um americano na Inglaterra. Também um filmaço! Abraços e dê uma passada, qualquer hora, no saudades do bom cinema, que tem novidades do mundo do faroeste!

AnnaStesia disse...

Forte, polêmico, marcante e grande representante da cinematografia dos anos 70. Grandes atuações, excelente roteiro e grande direção.
Aliás, Boorman foi responsável por dois filmes que gosto muito (e que foram citados) Excalibur e Esperança e Glória (principalmente).