maio 23, 2011

***************** SALA VIP: "A TORTURA do MEDO"




SUSPENSE e PSICANÁLISE à INGLESA


Notável contador de histórias, que fecunda com prodigiosa imaginação, virtuosismo profissional e um senso apurado do espetáculo, o britânico Michael Powell (1905 - 1990) realizou filmes inesquecíveis. Um deles, A TORTURA do MEDO, de 1960, provocou na época do lançamento um ódio repulsivo, sendo atacado severamente pelos críticos como revoltante e mórbido (o estúdio terminou por retirar a obra de circulação), mas uma década depois foi revalorizado, passando a ser visto como uma obra-prima e admirado por nomes como Martin Scorsese (que comprou os negativos para restaurar o filme em suas cores magníficas), Brian De Palma e Peter Bogdanovich. Insólito e moderno, com requinte de técnica e estética, narra o cotidiano de um jovem estranho e solitário (Karl Bohm). Traumatizado pelo pai (interpretado pelo próprio Powelll) que se servira dele quando menino para experiências psicológicas de resistência ao medo, ele se torna um maníaco homicida e usa habilmente o próprio instrumento de trabalho, uma câmara portátil 16mm (com um estilete dissimulado), para assassinar mulheres, filmando a expressão de terror estampado em seus rostos no momento exato do crime. Em sessões solitárias, ao ver e rever o olhar insano das suas vítimas quando percebem a morte chegando, sente um inusitado prazer.




O Mark Lewis do ator alemão Karl Bohm (conhecido como o romântico imperador da série “Sissi”) é um dos mais fascinantes personagens da história do cinema. Quando ele se interessa por uma vizinha, Helen (Anna Massey), e ela pede para ser fotografada, ele murmura, com tristeza: “Eu sempre perco tudo o que fotografo”. A estranha coincidência entre esta frase e os estudos do semiólogo francês Régis Debray, sobre uma suposta conexão subconsciente entre fotografia e morte, explica muito a respeito do thriller. A teoria é a seguinte: uma fotografia, ou filme, flagra alguém que, um instante depois, já mudou, torna-se uma imagem do passado, não pode ser repetida, então flagra algo que, de certa forma, já morreu. Debray acha, por isso, que fotos e filmes evocam a idéia da morte em algum recôndito do subconsciente humano. As palavras de Mark Lewis parecem concordar com isso. Não é a toa que o filme de Michael Powell é um favorito perene entre pesquisadores acadêmicos que estudam cinema.

Não se contentando em arquitetar apenas um thriller, o diretor realiza um processo rigorosamente cinemático de psicanálise aplicada e explicada, em que a forma visual poucas vezes deixa de servir a uma eficácia dramática, emanando, esta, de um postulado científico. Além disso, reflete sobre as relações entre o voyeurismo, a perversão e o ato de fazer cinema, identificando-se com o anti-herói e se compadecendo dele. Verdadeira aula de cinema, o filme conta com uma esplêndida fotografia de Otto Heller: opressiva, em fortes tonalidades vermelhas, azuis e verdes, com muitas cenas em interiores, na penumbra ou com iluminação artificial. O longa também possui uma trilha sonora nervosa e expressiva, composta de levadas solitárias ao piano, com toques de música avant garde de autoria de Brian Easdale. Outro ponto positivo: o uso versátil do som que dá uma força incontestável às elucubrações do cineasta.




Diretor de trajetória extraordinária, famoso desde a década de 40, foi produtor dos primeiros filmes de Alfred Hitchcock e realizou em parceria com Emeric Pressburger obras brilhantes como “Narciso Negro / Black Narcisussus” (1947) e “Sapatinhos Vermelhos / The Red Shoes” (1948). O furor e o desprezo contra A TORTURA do MEDO o colocou no ostracismo, sem poder exercer a sua profissão por recusa sistemática dos produtores, terminando por realizar apenas mais três filmes, alguns curtas e seriados de televisão, mas sem grande repercussão. Morreu em 1990, sempre defendendo o seu filme maldito, e acusando seus detratores de terem decretado o fim da sua carreira. Como sempre, estava certo.

A TORTURA do MEDO
(Peeping Tom, 1960)

País: Inglaterra
Gênero: Suspense
Duração: 101 mins.
Cor
Produção: Michael Powell (Powell-Theatre)
Direção: Michael Powell
Roteiro: Leo Marks
Fotografia: Otto Heller
Edição: Noreen Ackland
Música: Brian Easdale
Cenografia: Arthur Lawson (d.a.); Don Picton (déc.)
Vestuário: Polly Peck e Dickie Richardson
Elenco:
Karl Bohm (“Mark Lewis”), Moira Shearer (“Vivian”),
Anna Massey (“Helen Stephens”), Maxine Audley (“Sra. Stephens”),
Brenda Bruce, Miles Malleson, Esmond Knight,
e Shirley Anne Field (“Pauline Shields”)

Nota: ***** (ótimo)


6 comentários:

Alan Raspante disse...

Filme desconhecido para mim. Interessante, vou tentar ver.

Marcelo Castro Moraes disse...

Pois é, as vezes, para se criar uma obra prima, tem o seu preço, que no caso dele, foi a propia carreira. Tortura do Medo foi um filme muito a frente do seu tempo, simplesmente nem o publico e tão pouco a critica estavam preparado para ele. Somente restou o tempo para provar o quanto eles estavam errados por terrem julgado mau esse genial filme.

M. disse...

Oi Antonio! Também faço minhas as palavras do Alan, para mim também é um filme totalmente desconhecido. O melhor de tudo é saber a existência dele aqui através do seu blog e ler este seu maravilhoso texto. Pelo que você escreveu, acredito que o filme é muito bom. Uma pena que quando foi lançado não teve a devida importância, mas a seguir passou a ser valorizado mais tarde! Uma boa pedida. Entrando já já para minha lista! Gosto muito de suspense. Um abraço e ótima semana.

M. disse...

É. Eu sempre soube desse lado intelectual da Marilyn; Ela não era uma loira burra como vendiam a sua imagem ligada ao sensual e fútil. Norma Jean era muito mais. E quem sabia muito dela era o seu melhor amigo, Truman Capote. Quem ler esses escrits da Marilyn vai se surpreender com sua capacidade intelectual.

Flávio Adler disse...

Estranho, ñ conhecia o filme do Michael Powell por este nome, "A tortura do medo". Nunca o assisti, pra falar a verdade, mas já tinha lido algo a respeito num livro, q falava das duas obras-primas mais chocantes de 1960: "Psicose", de Hitchcock, e este do Michael Powell, cujo título, d acordo com o tal livro, era "Morbida curiosidade". Cheguei até a procurar informações na net sobre este filme, mas pouco vi a respeito! e agora, lendo esta matéria no blog, finalmente encontrei as informações detalhadas q tanto qeria. Realmente, o filme é muito interessante. Tudo o q eu li deixou um gosto de "qero mais", acho q vale a pena conferir :)

AnnaStesia disse...

Gente, esse filme é uma loucura! Quem ainda não assistiu... assista imediatamente. Pra ontem! Grande exemplar da fleuma criativa de Michael Powell e, claro, maravilhoso exemplar do cinema inglês.