Marlene Dietrich
A MITOLÓGICA MARLENE de ARTE PERVERSA
e REFINADOS DEBOCHES
Tudo que ouvimos falar de mítico, dourado e maravilhoso do cinema dos anos 30, 40, 50, 60, é hoje em dia, com o milagre do aparecimento dos filmes em DVD (e sua subsequente banalização) nas bancas de revista, livrarias etc, algo bastante acessível. Na fase inicial em que os clássicos que sempre quis ver foram aparecendo nesse formato, eu lamentava profundamente não ter dinheiro para comprar tudo, ficava encantado como um menino perdido numa loja de doces e tinha dificuldade enorme em escolher o que queria dentre tantas ofertas. O tempo, porém, me deu distanciamento crítico, como era inevitável: hoje sei que Nostalgia é um item que pode conter muita coisa equívoca, que nem todos esses filmes eram bons (alguns são francamente desprezíveis) e que muito do que passa por fabuloso em alguns clássicos tem que ser visto com a devida ironia que o saber e o tempo nos dão. Ademais, não é raro se topar com edições que, por lacradas, reservam péssimas surpresas – filmes em mau estado, extraídos de VHS, com legendas horríveis quando não ridículas, e que, mesmo quando intactos, ficaram irremediavelmente “datados”, envelheceram mal.
Mas há coisas que, por absurdas do ponto de vista da mudança dos costumes, da evolução do próprio cinema e da relativização dos estereótipos, por cômicas, de um kitsch pretensioso e perverso, contém um apelo irresistível. Acho que nesse aspecto ninguém tem tanta diversão e charme quanto a estrela MARLENE DIETRICH. Levá-la muito a sério é não entender nem curtir aqueles filmes, principalmente os feitos com Sternberg. Os exageros da estética “sternberguiana” tornavam belas e misteriosas as coisas mais disparatadas, e os enredos de seus filmes com DIETRICH são nada mais que fiozinhos de histórias lineares, pretextos para poses, insolências, frases dúbias, suspiros e olhares da estrela. Aconselho aos que ainda não conhecem DIETRICH que fiquem prevenidos ao pegar algum desses filmes: podem achar que o anacronismo é grande demais, que ela era uma atriz ruim, uma caricatura e uma figura superestimada. A tendência a ter esta opinião é compreensível. É preciso ter paciência e um espírito refinado, ser daqueles críticos que não excluem com nariz empertigado as delícias estéticas do deboche. É preciso munir-se de humor, de algum gosto pela desfaçatez, de um bom conhecimento da história de Hollywood e seus maneirismos, das condições em que eram realizadas aquelas produções, e do zeitgeist (espírito da época), sem dúvida. Daí, o deleite é certo.
DESFILE de MODA no DESERTO
Outro dia um amigo me emprestou “O Jardim de Allah / The Garden of Allah” (1936), filme famoso que está fácil de encontrar nas bancas. É uma relíquia absoluta de um tipo de cinema que não se faz mais, a não ser com doses maciças de deboche intencional. A produção, de David O. Selznick, é anterior ao “...E o Vento Levou / Gone Earth the Wind”, que ele faria em 1939. Como é dos primeiros filmes a cores, levou Oscar de fotografia. Mas, preparem-se. O que Selznick entendia por filmes a cores incluía crepúsculos sumarentos em laranja, abóbora, quase-escarlate, cinema de deslavado cartão postal, com um mau-gosto vistoso que, por isso, encantava platéias em quantidades sempre maiores (o kitsch jamais teve problemas em acertar-se com as demandas estéticas do público de massa, que por definição não é nem pode ser refinado). Em “O Jardim de Allah”, dirigido pelo polonês chamado Richard Boleslawski que não teve carreira das mais lembradas do cinema, tome camelos ao pôr do sol, languidamente curvados. O deserto, que é inverossímil, parece ter sido improvisado na Califórnia mesmo (naquela época, filmar em locações não era prática disseminada) e tudo vai ao delírio, com noites voluptuosas como uma idealização popular da Arábia, tamareiras, areais divinos, dunas de sonho e um ar tão fake que a gente pensa estar diante daqueles cartões festivos em que um sujeito não resistiu a salpicar purpurina sobre azul-profundo para simular estrelas.
Marlene entra no filme como certa Dominique Enfindem, que acabou de perder o pai e volta a um convento, onde é espiada pelas garotas como uma excentricidade do “mundo do pecado”, uma estrela, não como um personagem contrito e sofrido (ela nem tenta convencer na pele de uma sofredora ascética). Pede amparo espiritual a uma madre e é aconselhada a ir para o deserto, para uma temporada de autoconhecimento. A julgar pela superficialidade do filme, seria o equivalente de hoje em dia mandar alguma dondoca deprimida pela vida ociosa para um spa ou um resort para “restaurar as energias”. Deserto no filme é chance para que se desfile figurino. Nunca uma sofredora à procura de purgação no deserto foi como MARLENE DIETRICH. Alguém esperava que ela fosse ficar austera em sua elevada missão espiritual? Never. Mune-se dos mais lindos chapéus, das mais esvoaçantes echarpes, de vestidos, batas e um aparato que a torna, a cada momento, mais bela e mais manequim (aliás, era de “manequim indolente” que a crítica Pauline Kael a chamava). Nunca um grão de areia perturba aqueles cílios, aqueles olhares, e nunca o vento desfaz aquele penteado senão para torná-lo mais glamouroso. E nem é deserto o que se mostra, mas uma sucessão de oásis, onde até recepciona homens deslumbrados por ela com taças de champanhe que ninguém sabe como ela levou para lá. Convém dizer que, nesse deserto, ela é amada por um monge trapista que fugiu da ordem, um aturdido e péssimo Charles Boyer que nunca tem a mínima química com ela, que parece mais um garotão assustado. Jamais acreditamos que ele a ame. E ela corresponde a esse “amor” a seu modo: pondo um vestido novo ainda mais deslumbrante, quebrando a aba do chapéu, chorando – quando chora – sem a menor convicção. Não há filme mais delirante, mais camp, mas, se você relaxa e entra no espírito, é uma diversão fantástica.
Uma ÓTIMA “LOIRA GELADA” para HITCHCOCK
Para se ter idéia de como MARLENE era a própria desfaçatez, veja-se “Marrocos / Morocco” (1930), seu primeiro filme com Sternberg em Hollywood e grande sucesso popular, hoje em dia totalmente implausível e coisa para rir mesmo. MARLENE DIETRICH é a mulher de um milionário (Adolph Menjou) e vai parar em Marrocos por motivos que não precisamos saber (o passado misterioso desses personagens que fazia é absurdamente fácil de adivinhar, mas vem envolto em tantos muxoxos, olhares alusivos e esquivanças que fica lindamente “obscuro”). Lá, acaba conhecendo o soldado vivido por Gary Cooper muito jovem e muito bonito (e um ator lastimável, nesse início). Os dois são tão obviamente astros que, claro, tinham que ter um caso, e fazem muitas caras e bocas um para o outro. O final é inteiramente absurdo, e na verdade torna Cooper o único elemento “fatal” do enredo, mas é divertido supor, perversamente, a julgar pela conivência do personagem de Menjou com as liberdades tomadas pela mulher, que o marido estivesse fascinado por Cooper também ou curtindo muito sonsamente um discreto ménage à trois. Isso era bem Sternberg.
"pavor nos bastidores"
MARLENE, porém, passou por vários grandes diretores, Wilder, Welles, Hitchcock...Outra jornada em DVD com ela me levou a “Pavor nos Bastidores / Stage Fright”, realizado na Inglaterra em 1950. É um dos “filmes menores”, do Mestre do Suspense, segundo a crítica, mas mesmo em filmes assim Hitchcock demonstra mais talento que outros diretores em seus filmes principais. É a história de uma garota que aspira a ser atriz (Jane Wyman) e namora um sujeito (Richard Todd) que acaba de lhe confessar que tinha um caso com uma mulher casada que acabara de matar o marido e, para protegê-la, ele decidira ser tomado pelo assassino. A participação de MARLENE DIETRICH começa não por ela, mas por um pedaço ensangüentado de vestido. Depois, rola um show de desfaçatez e mentira. O que é curioso é que, em geral ao se mencionar Grace Kelly, Janet Leigh, Kim Novak, Tippi Hendren, entre outras, não se diga nunca que MARLENE foi também uma perfeita “loira gelada” para Hitchcock. Ela é essa Charlotte Inwood que manipula homens com uma displicente insolência (a maior especialidade da estrela, que era sempre melhor como mulher má ou muito fria). Para se ter uma ideia, ela acha que o assassino, um Jonathan estupefato (pelos olhares desvairados e os faniquitos, ele já prenuncia o Norman Bates de “Psicose / Psycho”, 1960), é um cãozinho seu, não mais. Está maravilhosa vestindo-se de viúva e exigindo que, naquele negror todo de sua roupa, entre um decote, pois, pelo amor de Deus, ninguém é de ferro...E depois canta com o maior cinismo “The Laziest Gal in Town”, de Cole Porter, número musical completo, o que era raro em filmes de Hitchcock (fala-se que ele foi dominado por ela durante as filmagens e não pôde exercer seu controle ditatorial). Melhor ainda é quando, numa feira teatral inglesa, sob a chuva, ao cantar “La Vie en Rose”, recebe das mãos do garoto uma boneca com um vestido ensangüentado (Hitchcock parece estar dizendo “não, agora é la vie en rouge”) e tem um colapso. Colapso de MARLENE DIETRICH, bem entendido, porque a pose nunca desmorona por completo.
A COISA MENOS NATURAL DESTE MUNDO
MARLENE DIETRICH é adorada até hoje porque representa a coisa menos natural deste mundo: uma estrela de verdade. Produto acabado e levado à transcendência pelo “star system” da Hollywood dos anos 30, teve uma carreira mais acidentada e confusa que a de Greta Garbo, a outra grande estrela mítica de seu tempo, já que não abandonou o cinema tão depressa. Era caricata e gozadora (nos extras de “Pavor nos Bastidores”, os depoimentos de Jane Wyman e de Patricia, filha de Alfred Hitchcock, são as provas de que era uma mulher que divertia a todos). Tinha menos talento dramático que Garbo – cujos personagens eram invariavelmente desprovidos de humor – e talvez se levasse menos a sério. Duvido que não desse lá umas boas risadas nos bastidores ao interpretar aquela Dominique de “O Jardim de Allah”. Era inteligente, uma alemã já meio blasé que saiu de uma Berlim muito libertina para uma Hollywood careta, ao consagrar-se internacionalmente com “O Anjo Azul” em 1929. Seus filmes com Von Sternberg, seis ao todo, são monumentos de uma arte que só foi cair sob o olhar rígido dos exegetas tempos depois (o público via aquilo como diversão e nada mais). A falecida crítica Pauline Kael, aliás, lamentava que a crítica de cinema dos anos 60 e 70, especialmente a francesa, dedicasse tantos ensaios sérios a um tipo de filme – o de Sternberg – que, na sua origem, foi compreendido como entretenimento, escapismo de boa qualidade ou pouco mais que isso. O certo é que MARLENE não pareceu preocupada em ser atriz, e isso por longo tempo. Contracenou com todo mundo, de Gary Cooper a John Wayne, passou por Fritz Lang (de quem não gostava), por Hitchcock, mas, se tinha um diretor que admirasse, era Billy Wilder, que considerava o homem mais inteligente de Hollywood e com quem filmou, já veterana, “A Mundana / A Foreign Affair” (1948) e “Testemunha de Acusação / Witness for the Prosecution” (1957).
Estava praticamente no fim, era já maior que si mesma, valendo como referência máxima, quando fez “A Marca da Maldade / Touch of Evil” (1958), com Orson Welles, em 1958. Aparece num salão barato, precedida por uma pianola, como aquela cartomante de peruca preta e, tragando um charuto e dando um daqueles olhares que só ela sabia dar, diz ao xerife vivido por Welles: “Você está um lixo. Anda comendo muito doce.” E a gente ali já pressente que o personagem está predestinado a um fim terrível. Se MARLENE DIETRICH emitisse uma sentença lúcida, e ainda por cima vestida de cartomante, pobre do homem a quem a sentença era dirigida! Grande mulher, muito mais uma estrela que uma atriz, realmente. Mas com uma classe que alguma estrela que a imite por aí, por mais que se esforce, jamais alcançará. É sair à procura dos DVDs desses antigos filmes divertidos e imperecíveis e conferir.
Texto de
CHICO LOPES
CHICO LOPES
14 comentários:
Excelente panorama e exposição sobre a Dietrich Antonio. Poxa! Não conhecia Chico Lopes. O texto é inteiramente dele?
Gosto dela em A Indomável, Pavor Nos Bastidores e principalmente O Anjo Azul, provavelmente sua fita mais célebre.
Abs.
Rodrigo
Por mais boa que fosse, eu pessoalmente, eu acho que ela tinha um olhar que dizia, "não to nem ai para você". Parecia meio cheia de si.
Excelente texto de Chico Lopes: informativo, ponderado e crítico à medida certa. Só não entendi a ausência de "Der Blaue Engel", obra prima que sempre tive como o principal filme estrelado pela div..., ôpa, Dietriech.
Não falei de "O anjo azul" e de outros filmes também famosos de Marlene porque quis percorrer um caminho um pouco diferente do habitual, tratando da grande estrela. Admiro muitíssimo a carreira dela e acho que o fato de achá-la um tanto exagerada não diminui o meu apreço por sua arte, que consistia mesmo em insolência e absurdo. Obrigado a todos.
excelente texto Chico Lopes!
como eu adoraria comprar nesse leilão esses objetos da Elisabeth rs
Prezado editor do excelente site O falcão maltês. Gostaria de saber como adquirir filmes originais de Bergman, Bresson, Hithcook...aguardo maiores informações. Obrigado.
Marlene, uma deusa intocável produzida à maneira do star system. Conheci-a através de O Expresso de Xangai, filme com o close nervoso que se tornou a imagem-símbolo da atriz.
Parabéns pelo texto, Chico!
Um "Wow" de postagem... Maravilha. Concordo... nao acho que Dietrich levava-se muito à sério (como atriz) e até me pergunto se ela realmente foi atriz ou mais uma "personalidade" nos teloes... Adorei a "a coisa menos natural deste mundo". Sim... definitivamente... quando penso em "O pecado é uma mulher"... Nossa! Concha Perez... dá-lhe falta de naturalidade nisso... e mesmo assim ela era maravilhosa. Uma personalidade estelar que dominou as cameras... Voce conhece o (maravilhoso) documentáro que Maximiliam Schell fez sobre ela (ela nao deixou-se ser filmada, só deixou gravarem sua voz nas entrevistas... )???? Eu posso mandar para voce, se quiser!
Um abracao e mut obrigado por esta postaem incrível! Ricardo
As jóias e os vestidos da Liz vão ser leiloados? Deveriam ficar em um museu para os fãs, isso sim. Abraço.
Sempre nos presenteado com ótimos textos!
Quanto a Marlene; já disse e repito, admiro demais o trabalho dela, tanto como atriz quanto como cantora.
Vi um filme da Dietrich em que ela faz uma cigana apaixonada pelo Ray Milland. Muito engraçado, ela não tinha nada de cigana, super maquiada e cheia de frases inteligentes e eróticas. Tão kitsch. No entanto, é tão encantadora que supera qualquer artifício.
Achei o texto bom, embora um pouco radical. O primeiro - A Vênus Loira - é mais completo e gostoso de ser ler.
E as jóias da Liz? Queria tanto um diamante daqueles...rs...
Seu blog está demais, parabéns. Fique com Deus. =)
A D O R E I! Que vontade que me deu de ver esses filmes!
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