novembro 13, 2011

******************* A PROPÓSITO de BUÑUEL

michel piccoli


Para LUIS BUÑUEL (1900 - 1983), a função do cinema não é representar a realidade, mas poetizá-la visceralmente. “O cinema”, afirma, “parece ter sido inventado para expressar a vida subconsciente, tão profundamente presente na poesia”. Por isso, sua obra ficou rotulada como maldita, na melhor acepção do termo maldito. Obra esta marcada por filmes anti-religião, anti-família e anti-sociedade, sendo responsável por uma profunda reestruturação da função do cinema. Depois dos primeiros filmes emblemáticos e da temporada no México, seu fôlego criativo encontrou abrigo na França, rodando espontâneos processos da inconsciência, mostrando assim um mundo absolutamente caótico e multifacetado. 

Essa fase francesa, a mais célebre de sua carreira, foi valorizada por atores como Catherine Deneuve, Fernando Rey, Michel Piccoli, Georges Marchal e Pierre Clémenti. Prestando homenagem a um cineasta notável, que permanece agredindo, maravilhando e estendendo sua influência pelo cinema contemporâneo (de Almodóvar a François Ozon), publico uma entrevista de 2009 com o excelente MICHEL PICCOLI (nascido em 1925) sobre Don Luís, lembrando também os cinco filmes que fizeram juntos. 

buñuel, julien bertheau  e piccoli

VOCÊ TRABALHOU COM UM CERTO SENHOR LUIS BUÑUEL?

Eu não me lembro muito bem. Eu não me lembro porque o Sr. Buñuel era muito discreto, muito reservado. Não tenho certeza se ele gostaria que suas histórias fossem reveladas. Mas eu trabalhei com esse senhor.

O PRIMEIRO FILME FOI “A MORTE NESTE JARDIM”?

Sim. Eu tive a chance de convidar o Sr. Buñuel para me ver em uma peça. Porque pensei que eu poderia interessá-lo. Ele veio ver a peça, ficou entusiasmado e um tipo de vínculo foi formado. Então, um dia, uma produtora me ligou e disse “nós estamos produzindo um filme do Sr. Buñuel e temos um papel para você”. Quando cheguei ao México o Sr. Buñuel me cumprimentou e disse: “Você não se parece nada com o personagem, mas estou feliz em te ver”.  Assim foi o começo de minha “buñuelização”.

simone signoret e piccoli
 em “a morte neste jardim”

COMO FOI A FILMAGEM DE “A MORTE NESTE JARDIM”?

Épico. No começo o Sr. Buñuel não estava feliz com o roteiro. Ele tinha muitas dúvidas. Toda manhã ele se levantada cedo para escrever ou reescrever.  O elenco tinha muitas estrelas. Eu sou o único que está vivo... Eu me lembro de tudo do Sr. Buñuel por causa da maestria de suas idéias e ações. Ele tinha muito medo de criaturas selvagens. Usava todas as proteções durante a filmagem: botas, calças de montaria, pulôveres.

VOCÊ FEZ OUTRO FILME DELE, “DIÁRIO DE UMA CAMAREIRA”, COM JEANNE MOREAU...

Foi um filme muito cômico. Acho que o Sr. Buñuel se divertiu muito mostrando estes personagens excêntricos, de mau gosto, muito sombrios. Mas de um jeito muito discreto, meticuloso. O Sr. Buñuel tinha muita loucura, mas também era extremamente sério e preciso. Ele nunca procurou importunar a existência de ninguém. Porque o seu maior talento, e o seu maior prazer, era confundir as pessoas, tanto suas mentes quanto as suas vidas. Trabalhar com o Sr. Buñuel era de certo modo bastante simples. Exceto que, isso é muito importante, você tinha que obedecer e não fazer perguntas. Você não podia perguntar: “Por que sentar nesta cadeira e não naquela?”. Era assim: “Você senta lá. Ele senta aqui. Você fala. Ele fala. Você responde. Só isso. Consiga na primeira tomada, por favor”.

piccoli e catherine deneuve 
em “a bela da tarde”

ELE EXPLICAVA A PSICOLOGIA DO PERSONAGEM?

Ele não sabia nada disso, ou não se importava em saber. Às vezes, por diversão, eu perguntava: “Sr. Buñuel, qual o significado implícito desta cena?”. Ele enrolava e não respondia.

E “A BELA DA TARDE”?

Ah, “A Bela da Tarde”. Eu tive muita sorte de... Como poderia dizer? Considerando que é o Sr. Buñuel, soa pretensioso, mas tive a sorte de compartilhar uma amizade de confiança e humor com ele, trabalhando em vários de seus filmes.

jeanne moreau e piccoli 
em diário de uma camareira

ELE GOSTAVA DE RIR?

Ele amava rir. Era um homem extremamente rígido e discreto, mas também, extremamente louco. Ele amava surpreender as pessoas com as histórias dele. Ele não tentava fazer as pessoas rirem. O que ele gostava, com seu rigor e humor chocante, era agitar as pessoas, mas sempre com grande discrição, atenção e amizade. Nunca era agressivo, nunca. Era só com quem era íntimo dele que ele expressava raiva ou seus pensamentos interiores. Mas isso era muito raro.

E “O DISCRETO CHARME DA BURGUESIA”?

O que posso dizer sobre o trabalho que fiz com o Sr. Buñuel? Ele fez filmes que formaram um tipo de diálogo entre si. Sempre havia a mesma intensidade, a mesma densidade, a mesma loucura no trabalho do Sr. Buñuel. Isso sempre estava presente. Nós nos divertimos. É o melhor jeito de dizer. Isso é tudo o que se pode dizer. Todas as pessoas que trabalharam com ele, atores ou técnicos. Era um tipo de trupe eterna. Eu digo eterna porque, quando, entre nós, falamos sobre o Sr. Buñuel é como se ele ainda estivesse vivo. É a brincadeira mais terrível dele. Porque ele era um homem exemplar. “Um homem exemplar” soa terrível. Eles não existem. Imaginamos que ele nem sempre foi exemplar durante toda a sua vida. Mas ele adorava ter uma consciência clara e estar impecável tanto no seu trabalho quanto com as pessoas. De todos os diretores que conheci, ele foi o mais profundamente honesto e escrupuloso com os seus orçamentos. Ele nunca ultrapassou o orçamento, nem mesmo por um franco. Ele era um homem meticuloso sobre todos os pontos de vista. E era extremamente louco.

stephane audran e piccoli 
em “o discreto charme da burguesia”

PICCOLI DIRIGIDO por BUÑUEL

A MORTE NESTE JARDIM / La Mort en ce Jardin (1956)

DIÁRIO DE UMA CAMAREIRA / Le Journal d’une Femme de Chambre (1964)

A BELA DA TARDE / Belle de Jour (1967)

O ESTRANHO CAMINHO DE SÃO TIAGO / La Voie Lactée (1969)

O DISCRETO CHARME DA BURGUESIA / Le Charme Discret de la Bourgeoisie (1972)

O FANTASMA DA LIBERDADE / Le Fantôme de la Liberté (1974)


buñuel por salvador dali

20 comentários:

João Roque disse...

Piccoli foi e é um grande actor e se trabalhou variadas vezes com este mestre do cinema que foi Buñuel, não foi esse facto que determinou o seu elevado estatuto de actor.
Penso que ambos,Buñuel e Piccoli saíram beneficiados dessa ampla colaboração.

renatocinema disse...

Não sei o que mais me atraiu: a entrevista histórica e relevante ou a ótima imagem de Salvador Dali.

Os dois merecem meus aplausos.


Parabéns.

Marcelo Castro Moraes disse...

Conheci BUÑUEL tempos atrás, quando eu comprei uma revista especial da Bravo, onde tinha uma lista sobre os 100 melhores filmes de todos os tempos e dois do diretor estavam nela, Cão Andaluz e Viridiana. Devo reconhecer que são duas obras primas, mas não estava satisfeito, e logo me tomou um desejo de conhecer mais de sua filmografia. Com isso, conheci clássicos como a Dama da Tarde, Os Esquecidos e O Anjo Exterminador, que para mim, é seu melhor filme. Mas não é para qualquer um a filmografia dele, já que na maioria dos seus filmes, ele fica sempre cutucando sobre a religião e o engraçado que ele nunca se repete, sempre fez de uma forma original em cada um dos seus filmes. Sou uma pessoa católica, mas tenho a mente aberta, portanto aceitei a visão dele sobre o mundo de bom agrado e o admirei pela sua coragem. Se naqueles anos ele já havia sofrido com protestos contra seus filmes, imagine hoje que somos impregnados nessa onda de politicamente correto.

Fábio Henrique Carmo disse...

Interessante como o Piccoli também enrola e não responde em algumas perguntas. Parece que aprendeu com Buñuel. De qualquer forma, ótimo post ao relembrar esse gênio da Sétima Arte. Me fez lembrar agora a "participação" dele em "Meia-Noite em Paris". Um barato!

David Cotos disse...

Buñuel dirigio a buenos artistas que hicieron de sus películas, grandes películas.

Paulo Telles disse...

Conheço pouquíssimo os trabalhos de Buñuel, mas uns poucos anos atras eu assisti "Nazarin", onde ele faz uma crítica a hipocrisia da Igreja Católica e ao sistema.

Um padre passando por uma crise de fé, onde ele vive literalmente o evangelho e as palavras de Jesus em um mundo só seu e acredita que tudo irá bem se fizer o bem para o próximo. Mas todas as suas boas ações acabam não resultando o que ele espera, e para piorar, as autoridades eclesiásticas vem a persegui-lo.

O aspecto interessante nas obras de Buñuel é que ele crítica sistematicamente o Poder, o Sistema, e os absolutos donos da verdade que se promovem em nome da fé ou de ideologias, pois como ele próprio dizia, "aborreciam a ele e lhe davam medo". Sem dúvida, ele tinha razão.

Brilhante post, ótima reportagem.

Page disse...

I really enjoyed your very informative and honest post on Piccoli.
Well Done!
Page

Darci Fonseca disse...

Sam Spade bem que poderia nos trazer posts exclusivos sobre Pierre Clementi e Delphine Seyrig...

Carla Marinho disse...

Meu querido, cá estou eu aprendendo cada vez mais. Abraço.
Post indicado nos melhores da semana.

http://blogsdecinemaclassico.blogspot.com/2011/11/links-da-semana-de-7-1311.html

Tunin disse...

Bela entrevista! Abração.

Victor Ramos (Jerome) disse...

Meu... do cara eu só vi mesmo O Cão Andaluz. Tenho que ver mais.

Excelente post, Antônio!

Abs!



Pudim de Cinema

Ana Paula Chagas disse...

Grande!

Sergio Andrade disse...

Maravilha, Antonio! Bela homenagem ao meu cineasta preferido!

Abs

disse...

Que entrevista reveladora... Ajudou a mostrar que pessoa incrível deve ter sido Buñuel.
Abraços!

linezinha disse...

Excelente entrevista Antonio! dos filmes de Buñuel só assiste A bela da tarde.
Abraços

AnnaStesia disse...

Antônio, obrigado por nos dar o prazer de ler essa entrevista e também de homenagear Buñuel e Piccoli. Essa parceria do dois forma o verdadeiro "quinteto fantástico" de grandes filmes!

Gilberto Carlos disse...

Buñuel é incomparável e A bela da tarde inesquecível.

Já Wagner Moura deve ter uma carreira internacional significativa, seguindo os passos de Sonia e Alice Braga.

Rafa Amaral disse...

Olá Falcão! Incrível a entrevista sobre Buñuel, que considero um dos maiores diretores do mundo. Poucos levaram o cinema à frente como arte livre como ele. Além disso, ótimo também o destaque aos filmes sobre circo. Abraços e continue assim, pois seu blog está demais!

Rubi disse...

Que post fantástico Antonio!
Quanto ao Wagner Moura, ele tem um futuro promissor.

Edivaldo Martins disse...

É DISCRETO O CHARME DA BUGUESIA?