setembro 27, 2012

******************** SALA VIP: “O GATO”




O FIM de um AMOR

Adaptação de um romance do famoso escritor belga Georges Simenon, trata-se de um filme em que as atitudes e olhares importam mais que os diálogos (escassos, embora precisos). Tem como cenário um humilde subúrbio de Paris onde vegeta um idoso casal arruinado pelo fim do amor. Quando o marido dedica o seu afeto a um gato vira-lata, a tensão entre eles se torna insuportável. Aposentados, ela havia sido acrobata de circo, ele tipógrafo. Ela era linda e ele um trabalhador comum e dedicado como tantos outros. Inexplicavelmente, o amor desapareceu até o ponto de Julien (Jean Gabin numa atuação sagaz, dilacerante) só amar a seu gato, enquanto Clémence (Simone Signoret, lembrando Joan Crawford) ainda tem nostalgia de um amor perdido e se refugia na bebida. Enlouquecida pelo desprezo, ela mata o gato a tiros. Julien decide abandoná-la e vai viver com uma antiga namorada, mas Clémence assedia-o e consegue fazê-lo voltar para casa. E a rotina recomeça, mais terrível que nunca.

Controlar a amargura desta relação é quase impossível - apesar das recordações sutis -, custando imaginar que eles alguma vez se amaram e decidiram passar a vida juntos. O enorme peso da incomunicação, do silencio entre estas duas pessoas - que praticamente não se dirigem a palavra, comem sozinhos e dormem em camas separadas - e a forma em que seguem vivendo dependendo um do outro, geram uma tensão onipresente, com um desespero contido a ponto de explodir a qualquer momento. A câmera sufocante parece dizer o tempo todo que a morte dos ex-amantes é inevitável, e esse destino predeterminado nos comove profundamente. Sem nenhuma razão de existir, eles estão mortos antes de morrerem fisicamente.

Como vemos, não é um conto feliz, muito pelo contrário, com a infelicidade realçada o tempo todo por edifícios vizinhos que estão sendo derrubados, talvez como metáfora da decadência da dupla ou anunciação dos novos tempos que virão. A potência expressiva dessa narrativa se apoia nas interpretações soberbas de dois monstros sagrados do cinema: Simone Signoret e Jean Gabin. Em um duelo sem concessões, além de qualquer melodrama, absorve a atenção do espectador, hipnotizando-nos. Eles estão maravilhosos, numa impacto autodestruidor que lembra “Quem Tem Medo de Virginia Woolf? / Who’s Afraid of Virginia Woolf?” (1966), de Mike Nichols. A cena da morte de Clémence é arrebatadora, talvez a mais real que eu tenha visto nas telas.

Drama excepcional, de atmosfera neurótica e traumática, O GATO retrata sem dó nem piedade o fenecimento das ilusões amorosas. De atmosfera pesada, inquietante e perturbadora, desenvolve uma crise matrimonial numa progressão bem administrada e habilmente  dosada, entre o pessimismo e o desencorajamento. Foi dito, não sem razão, que esta é uma das obras cinematográficas mais devastadoras sobre a vida conjugal, traduzindo o amor destruído, o declínio definitivo e fatal da vida de casado. Mas com certeza não é uma história incomum. Não deve ser difícil encontrar casais que evitam o divórcio – especialmente se tem certa idade -, embora se detestem, continuando juntos por pura inércia, ou por temer uma solidão ainda maior.


Primeiro filme que vi deste diretor, surpreendi-me gratamente, tanto pelo argumento, cuja luminosidade devemos a Simenon, como por seu estilo direto, fulminante. Clássico e discreto, Pierre Granier-Deferre lembra o método eficaz e talentoso de William Wyler. Ele considerava O GATO o seu melhor trabalho. Recomendo, se tiver oportunidade de vê-lo. Não vai se arrepender. Com certeza irá procurar outros filmes do diretor ou dos atores protagonistas. Como conheço muito bem a filmografia de Gabin e Signoret, fui em busca de Granier-Deferre, assistindo “A Viúva / La Veuce Couderc” (1971) e “O Trem / Le Train” (1973), outros dois grandes filmes. Mas aí já é outra história.

O GATO. Título Original: Le Chat. Ano: 1971. Países: França e Itália. Gênero: Drama. Duração: 86 min. Produção: Raymond Danon (Lira Filmes / Cinétel / Gafer). Direção: Pierre Granier-Deferre. Roteiro: Pierre Granier-Deferre e Pascal Jardin. Baseado no romance de Georges Simenon. Fotografia: Walter Wottitz. Edição: Nino Baragli e Jean Ravel. Trilha Sonora: Philippe Sarde. Cenografia: Jacques Saulnier e Charles Merangel. Figurino: Yvette Bonnay e Micheline Bonnet. Elenco: Jean Gabin (“Julian Bouin”), Simone Signoret (“Clémence Bouin”) e Annie Cordy.

Nota: ***** (ótimo)

Prêmios: Urso de Prata de Melhor Atriz
e Melhor Ator no Festival de Berlim.

PIERRE GRANIER-DEFERRE
(1927 - 2007)

Cineasta francês que nunca obteve reconhecimento da crítica, ganhou um César (o Oscar francês) e teve uma carreira de mais de quatro décadas, dirigindo as principais estrelas da França dos anos 60 e 70, como Romy Schneider, Yves Montand, Jeanne Moreau, Alain Delon, Jean Gabin, Simone Signoret, Jean-Louis Trintignant, Lino Ventura, Michel Piccoli, Philippe Noiret, Jean Rochefort e Patrick Dewaere. Apaixonado por policiais noir de George Simenon, foi assistente de Marcel Carné. Era um desses diretores que os críticos não valorizam muito, mas nunca deixou de ser bom a serviço de um tema delicado, extraindo o melhor dos atores. Mais do que um cinema de autor, o dele era de ator. Conhecido pela despretensão estilística, fazia cinema baseado nas coisas simples (mas complexas) da vida. Um cinema honesto e de qualidade, que muitas vezes surpreendia.

GEORGES SIMENON
(1903 - 1989)

De uma fecundidade extraordinária, escreveu 192 romances e 158 novelas, além de obras autobiográficas e numerosos artigos e reportagens sob seu nome e dezenas de romances, contos e artigos sob vinte e sete pseudônimos diferentes. As tiragens acumuladas de seus livros atingem mais de 500 milhões de exemplares. Seu personagem mais famoso é o Comissário Maigret, presente em setenta e cinco novelas e vinte e oito contos. Em 1919, começa como repórter no jornal La Gazette de Liége, escrevendo com o pseudônimo de “G. Sim.”. Nesse ano, redige seu primeiro romance, “Au Pont dês Arches”, publicado em 1921. Nessa época, aprofunda seu conhecimento do meio boêmio, das prostitutas, dos bêbados, anarquistas, artistas e mesmo futuros assassinos. 

Diferente de muitos autores, que tentam construir uma intriga o mais complexa possível, como um jogo de ecos, Simenon propunha uma trama simples mas com personagens fortes, um herói humano obrigado a ir ao fundo de sua lógica. A sua mensagem é complexa e ambígua: nem culpados nem inocentes, mas culpas que se engendram e se destroem em uma cadeia sem fim. Os seus romances colocam o leitor em um mundo rico de cores, sentimentos e sensações. Baseados nas intrigas de pequenas vilas de província, evoluem à sombra de personagens de aparência respeitável mas que urdem feitos tenebrosos, numa atmosfera própria, do qual os do Comissário Maigret são, certamente, os mais populares.

SIMONE SIGNORET
(1921 - 1985)

Símbolo da França, viveu seus últimos dias doente, até ser derrotada por um câncer contra o qual lutou até o fim. Em seu último trabalho para o cinema, “Guy de Maupassant”, rodado em 1981, já tinha perdido 15 quilos, mas sua força e vitalidade continuavam intocadas. Judia de origem alemã, estreou no cinema em 1942. Sete anos depois encontra Yves Montand e a paixão é definitiva. Desde o começo, é uma relação única. Ela o acompanha em seu engajamento ideológico de esquerda e nas lutas pelos direitos do homem. Cada um faz sua carreira, Yves como cantor e ator de primeira grandeza e Simone como atriz completa, uma atriz que nunca quis ser estrela, mantendo ferozmente a individualidade, a vida à margem da ficção das telas. 

Seguem-se papéis memoráveis nas mãos de diretores como Max Ophuls, Marcel Carné, Henri-Georges Clouzot, Luis Buñuel, René Clement, Costa-Gavras, Sidney Lumet, Jean-Pierre Melville e Patrice Chéreau. Com o inglês “Almas em Leilão / Room at the Top” (1959), de Jack Clayton, ganha o prêmio de Melhor Atriz em Cannes e o Oscar de Melhor Interpretação Feminina. Sua carreira abrange mais de 60 filmes, desde superproduções até filmes políticos. Corajosa, lúcida, foi grande até o final. Sua luz, a luz de alguém que olhou a vida corajosamente de frente em todos os momentos, que amou e foi amada por seu público, brilhará para sempre.

JEAN GABIN
(1904 - 1976)

Passou quinze anos atuando em cabarés antes de debutar no cinema em 1928, nos brindado com verdadeiros clássicos como “A Grande Ilusão / La Grand Illusion” (1937), “Cais das Sombras / Le Quai des Brumes” (1938), “O Prazer / Le Plaisir” (1952), “French Can-Can / Idem” (1954) e “Gangsters de Casaca / Mélodie en Sous-sol” (1963). Seu início de carreira foi bastante difícil, trabalhando em produções de menor importância. Contudo, Julien Duvivier dá-lhe a oportunidade de mostrar seu talento em “A Bandeira / La Bandera” (1935) e, principalmente, na produção “O Demônio da Algéria / Pépe le Moko” (1937), no qual interpreta um criminoso com brio e grande sucesso. Em 1941 deixa a França em direção a Hollywood, pois se recusou a filmar para os alemães. Nos EUA atua em dois filmes: “Brumas / Moontide” (1942) e “O Impostor” (1944), enquanto se envolve amorosamente com Ginger Rogers e Marlene Dietrich. 

Quando retorna ao seu país, começa um período de declínio na sua carreira. O renascimento vem com o policial “Grisbi, Ouro Maldito / Touchez Pas au Grisbi” (1954), ao lado de Jeanne Moreau. Recuperado o sucesso, mostrando o quanto seu talento permanecia intacto, nos anos 60 abre sua própria empresa de produção, junto com Fernandel: a “Gafel”. Expande sua fazenda na Normandia comprando terras e tornando-se criador de gado. Seu último filme, a comédia “L'Année Sainte” (1976), dirigido por Jean Girault e com Jean-Claude Brialy e Danielle Darrieux, foi um fracasso. Nesse mesmo ano se foi, e com ele uma figura mítica do cinema francês.

18 comentários:

Marcelo Castro Moraes disse...

Ainda me era desconhecido esse filme. Boa dica Antonio.

O Neto do Herculano disse...

Atmosfera neurótica traumática, pesada, inquietante e perturbadora.

Dizer mais o quê?

António Je. Batalha disse...


Olá , passei pela net encontrei o seu blog e o achei muito bom, li algumas coisas folhe-ei algumas postagens, gostei do que li e desde já quero dar-lhe os parabéns, e espero que continue se esforçando para sempre fazer o seu melhor, quando encontro bons blogs sempre fico mais um pouco meu nome é: António Batalha. Como sou um homem de Deus deixo-lhe a minha bênção. E que haja muita felicidade e saude em sua vida e em toda a sua casa.
PS. Se desejar seguir o meu humilde blog, Peregrino E Servo, fique á vontade, eu vou retribuir.

Enaldo Soares disse...

Vi este filme na adolescência e ajudou a sedimentar em mim a concepção de que casamento não tem como acabar bem.

Wir Caetano disse...

Adoro o ótimo romance de Simenon. O filme não conheço. Então #ficadica pra mim.

disse...

Dois grandes nomes do cinema francês reunidos! Me parece um ótimo filme, ainda mais sendo baseado em um escrito de Simenon. Conhecia o comissário Maigret, mas não sabia que seu criador tinha escrito tanta coisa.
Abraços!

Unknown disse...

vlw pela dica, Antonio, fiquei curioso para ver!

Chico Lopes disse...

Venero Simone Signoret! Que rosto mais expressivo ela tinha!

M. disse...

Eu não conhecia este filme! E você fez um super e excelente post sobre ele. Bom fim de semana!

Anônimo disse...

Adoro este livro!!!Mas onde posso arranjar o filme? Grande fã de Signoret e Gabin também

Ana Paula Chagas disse...

Gente, assisti no século passado. Rever é preciso. Lembrança muito válida Antonio Nahud Júnior.

Brenda Rosado disse...

Amo Simone Signoret e Jean Gabin, mas não sabia que havia feito um filme juntos. Preciso vê-lo.

Brenda Rosado disse...

Gabin teve um romance com La Dietrich durante muito tempo, Falcão?

Diógenes Coutinho disse...

O Gabin me lembra o Spencer Tracy.

Giordano Marquez disse...

Um belo drama que revela com maestria a condição dos casamentos de muitos anos.
Giordano.

Neuzamaria Kerner disse...

Nahud, é um filme sufocante, desesperador, embora a atuação brilhante dos atores... Ao ler sua resenha - tão fiel ao filme - senti uma dor na boca do estômago, não pelo seu texto que é brilhante, mas pela situação daquele casal que se desgraça em desamor.

claudia brando freitas disse...

Lembra um pouco gabin foi uma versão mais charmosa dele porem igualmente talentoso!

claudia brando freitas disse...

Vi um erro na sua matéria acabei de assistir grisbi ouro maldito e não tem a jeane Moreau no filme a atriz que aparece ao lado do gabin eh Dora doll que trabalhou com ele também em french can can!