julho 08, 2017

****** KENJI MIZOGUCHI - SERENIDADE e VIOLÊNCIA

“utamaro e suas cinco mulheres”

Há um culto a KENJI MIZOGUCHI (1898 – 1956). Jean-Luc Godard, nos seus tempos de crítico, foi o guardião do mito. Traumatizado pela falência familiar, que levou os pais a vender sua irmã a uma casa de gueixas, o cineasta japonês construiu uma carreira marcada pela indignação, perseguindo sentimentos em estado de pureza: honra, dever, lealdade, amor e justiça. Poucas vezes o cinema viu em um autor tamanho rigor formal com igual medida de extremismo moral. Nele, a noção de sacrifício decorre naturalmente da necessidade de expurgação, único meio que seus personagens encontram para superar a corrupção humana.

O autor do clássico “Contos da Lua Vaga” (1953) viveu um importante período de transição cinematográfica, passando da fase do cinema mudo ao falado, e do preto-ebranco ao colorido. Dos seus filmes da fase muda, destacam-se algumas obras-primas e já se notam  características que iriam nortear as seus dramas mais importantes: ênfase em costumes emocionais tipicamente japoneses, influência do expressionismo alemão, e interesse por mulheres reprimidas, seus sacrifícios e sabedoria.

ayako wakao e mizoguchi
Em 1897, plateias do Japão tomaram conhecimento de uma nova forma de entretenimento, através da demonstração do sistema de projeção de filmes da Vitascope, empresa norte-americana. O primeiro filme produzido no país foi o documentário de curta-metragem “Geisha no Teodori”, em 1899. Enquanto no mundo inteiro o cinema era mudo, no Japão os filmes eram parcialmente sonorizados com a presença do benshi, uma pessoa que reproduzia os diálogos do filme, interpretando as vozes dos vários personagens durante a projeção – uma espécie de dublador ao vivo. Os filmes japoneses desse período em geral retratam aventuras de samurais injustiçados, e o principal expoente dessa época foi o trabalho de KENJI MIZOGUCHI.

O terremoto de 1923, o bombardeio de Tóquio durante a Segunda Guerra Mundial, assim como os efeitos naturais do tempo e da umidade nas frágeis películas destruíram a maior parte dos filmes realizados pelo diretor no período. Na fase do sonoro surgem suas obras mais significativas. Já no período posterior à Segunda Guerra, destacam-se os filmes que tiveram a atriz Kinuyo Tanaka no papel principal, como “Oharu, a Vida de uma Cortesã” (1952), onde alcançou a excelência de sua arte. Tragédia de cunho realista, que narra a história de uma mulher dominada pelo sistema feudal, possui uma estrutura narrativa marcada por visão oriental silenciosa e sugestiva, expressada através da linguagem que marcou o diretor: o método onde a câmara se fixa longamente numa tomada, aumentado a dramaticidade através da plástica. Esse drama de época conquistou o prêmio de Melhor Direção no Festival de Veneza, no ano de 1952.

oharu - a vida 
de uma cortesã
Considerado um dos cineastas mais importantes da história do cinema, KENJI MIZOGUCHI morreu em 1956, aos 58 anos de idade, vencido pela leucemia. Dirigiu o primeiro filme em 1923, realizando mais de 80 títulos, sendo seu maior sucesso, “Contos da Lua Vaga”, brilhante e poética reconstituição do passado, num realismo que aponta os prolongamentos do sistema feudal no Japão contemporâneo. De grande beleza visual, premiado com o Leão de Prata no Festival de Veneza de 1953, tem como protagonista a formosa e excelente Machiko Kyo (de “Rashomon / Idem”, de Akira Kurosawa, 1950).

É um dos meus filmes favoritos. Ele constrói uma narrativa fantasmagórica. A história se passa no século 16, durante a guerra civil japonesa, e acompanha a viagem de pobre oleiro e seu cunhado com as respectivas mulheres rumo à capital da província onde vivem, nas redondezas do lago Biwa, para vender utensílios de cerâmica. As cenas filmadas no castelo, com a chegada da primavera, são de uma beleza sublime, reflexo do perfeccionismo do diretor. Seus filmes têm uma estética remanescente da arte japonesa, detalhista. Os longos planos, a mis en scéne rebuscada, a encenação pictórica, são frequentes. Ele raramente utilizava close ups, preferindo compor planos conjuntos.

Suas cenas podiam demorar pouco, mas sempre davam ênfase ao cenário, à luminosidade. Reza a lenda que ele repetia tomadas à exaustão, o que em muitos casos se tornaram um pesadelo, principalmente para suas atrizes. Sua preferência por planos longos significava que não havia espaço para erros: conta-se que, em alguns casos, ele chegou a rodar cem tomadas de um mesmo plano. A essa estética refinada soma-se o envolvimento do público com o tema, e à habilidade com que ele provoca simpatia pelos seus personagens, que em alguns casos são “endeusados” mas, no fundo, são apenas humanos.

kenji mizoguchi
O trabalho de KENJI MIZOGUCHI é bastante conhecido pela sua proteção feminina característica. A forma como ele filma Lady Wakasa (Machiko Kyo) em “Contos da Lua Vaga” é de uma delicadeza comovente. Ela está sempre em destaque. O diretor não era feminista, mas de certa forma revelou no cinema a posição feminina na sociedade japonesa como humilhante e oprimida, e demonstrou que as mulheres podem ser capazes de maior nobreza entre os sexos. Fez muitos filmes sobre os apuros das gueixas, mas seus protagonistas podem derivar de qualquer lugar: prostitutas, trabalhadores, ativistas de rua, donas-de-casa e princesas feudais.

Não se assemelha a nenhum outro autor do cinema japonês. Pela diversidade de obra - adaptou vários escritores ocidentais -, pela mistura de serenidade e violência, pode-se buscar, quem sabe, uma aproximação com Akira Kurosawa. O cinema de KENJI MIZOGUCHI tem força própria, é diferente, muito diferente.  Seu estilo é clássico, tomadas longas e sem close-ups, e preocupação humanista. Assistir aos seus filmes significa abrir uma janela diferente para a percepção oriental de temas universais, experimentando um determinismo dramático. Ele não consegue conter sua vocação inflexível na regeneração do homem. Tantas décadas passadas, a integridade de sua mensagem humanista ainda causa impacto, numa época em que se evidencia o esgotamento ético.

machiko kyo em contos da lua vaga

10 FILMES de MIZOGUCHI

AS IRMÃS DE GION
(Gion no Shimai, 1936)
Com: Isuzu Yamada e Yoko Umemura

CRISÂNTEMOS TARDIOS
(Zangiku Monogatari, 1939)
Com: Shotaro Hanayagi e Kakuko Mori

MULHERES DA NOITE
(Yoru no Onnatachi, 1948)
Com: Kinuyo Tanaka e Sanae Takasugi

PAIXÃO ARDENTE
(Waga Koi wa Moenu, 1949)
Com: Kinuyo Tanaka e Mitsuko Mito

OHARU – A VIDA DE UMA CORTESÃ
(Saikaku Ichidai Onna, 1952)
Com: Kinuyo Tanaka e Toshiro Mifune

CONTOS DA LUA VAGA
(Ugetsu Monogatari, 1953)
Com: Machiko Kyo e Masayuki Mori

OS AMANTES CRUCIFICADOS
(Chikamatsu Monogatari, 1954)
Com: Kazuo Hasegawa e Kyoko Kagawa

O INTENDENTE SANSHÔ
(Sansho Dayu, 1954)
Com: Kinuyo Tanaka e Yoshiaki Hanayagi

A PRINCESA YANG KWEI FEI
(Yokihi, 1955)
Com: Machiko Kyo e Masayuki Mori

RUA DA VERGONHA
(Akasen Chitai, 1956)
Com: Ayako Wakao e Machiko Kyo

kenji mizoguchi

25 comentários:

Darci Fonseca disse...

Olá, Antonio
Beleza de texto sobre Mizoguchi. Difícil resistir assistir a filmes dele depois de ler o que você escreveu.

Marcelo Castro Moraes disse...

É, o cinema do japão não se vive apenas de Kurosawa.

Novo filme de Roman Polanski com Christoph Waltz no elenco? Depois do genial Escritor Fantasma espero de tudo com relação a esse filme e de uma interpretação magistral de Waltz.

Alice Oliveira disse...

Muito obrigada pela visita!

Ainda não conhecia o Mizoguchi...quero ver os filmes ^^

http://rebucomcafe.blogspot.com

beijinhos

disse...

Olá, Antonio! Taí mais uma personalidade do cinema que conheci através de seu blog. Hoje preciso de uma ajuda: vi em seu perfil que você é também autor de vários livros. Estou para publicar um livro infanto-juvenil e gostaria de alguns conselhos sobre a procura de editoras para publicação e publicação independente.
Abraços, Lê

Rubi disse...

É sempre bom vir a seu blog, principalmente quando leio sobre grandes nomes do cinema que ainda não conhecia. Vou procurar alguns filmes da lista. Afinal de contas, informação nunca é demais, principalmente quando envolve cinema haha.

Até mais!

Cefas Carvalho disse...

Amigo, de Mizoguchi só havia assistido ao "Contos da lua vaga". Depois do post vou garimpar lá na Sétima Arte mais alguns filmes do cineasta. Abração.

ANTONIO NAHUD disse...

Pois é, Marcelo, estou ansioso à espera desse filme que tem no elenco duas atrizes que amo: a Kate e a Jodie.

ANTONIO NAHUD disse...

Mande o seu e-mail, Lê. Tenho algumas dicas.
Beijos

Kley disse...

Contos da Lua Vaga é formidável. Vou ver essa semana O Intendente Sancho.

ANTONIO NAHUD disse...

O INTENDENTE SANSHO é muito bom também, Kley. Vc vai gostar.

Alma em Flor disse...

Excelente o blog.

A-D-O-R-O!

Vertigo et Moira disse...

saudades de um tempo ao qual nao pertenci...

Jamil disse...

O Mizoguchi é de longe superior a Ozu e Kurosawa.

Jamil disse...

Vamos ver se Polanski acerta desta vez. O Escritor Fantasma nunca foi um grande filme.

Emílio José disse...

Antonio Júnior
Assisti Contos da Lua Vaga através da Tv Cultura nos anoa 90 em Ilhéus captado por antena parabólica.A cópia não era de boa qualidade,eu estava com muito sono.Porém as imagens e a forma de narrar bem como a trilha sonora me encantaram tanto que eu tenho receio de rever e perder esta fantasia.

Eu e Neuzamaria retornamos para Vitória-ES.
Abraço.

Emilio Suzart

GIANCARLO TOZZI disse...

Jamil se equivoca. Mizoguchi é melhor que Ozu, um cineasta chatíssimo, mas jamais supera Kurosawa.

Neuzamaria Kerner disse...

Oi, Nahud Jr.

Há muito tempo que ouço falar em Contos da Lua Vaga e ainda não tive a oportunidade de assistir. Só pelo título, tão poético, tenho certeza de que vou gostar. Agora vendo tantos comentários sobre o Mizoguchi, já vou procurar o filme.

abração
Neuzamaria

Jamil disse...

Pelo visto o senhor Giancarlo não conhece a obra de Mizoguchi.

ANTONIO NAHUD disse...

Pode revê-lo tranqüilamente, Emílio. Vc vai adorar.

ANTONIO NAHUD disse...

Não sei se Mizoguchi é melhor ou não que Kurosawa, caros Jamil e Giancarlo. Ambos são grandes realizadores. Em relação Ozu não posso opinar, sou suspeito, já que nunca gostei dos poucos filmes dele que vi.

ANTONIO NAHUD disse...

Jamil, também achei O Escritor Fantasma bem fraquinho.

JAVI disse...

Maravilloso Mizoguchi. Un cine precioso y de ritmo diferente al que solemos ver por Europa y América. Saludos y gracias por ir dejando comentarios en mi blog.

linezinha disse...

ainda não vi nenhum do Mizoguchi excelente matéria Antonio!

M. disse...

E eu que não assisti nenhum desses filmes japoneses!

Erica disse...

Faz uma resenha sobre joan bennett