março 31, 2022

***************** ANATOMIA do CINE JAPONÊS

“a face do outro”


No início do século 20, o Japão fundou sua própria indústria cinematográfica retratando aventuras de época sobre samurais injustiçados. Enquanto no mundo inteiro o cinema ainda era mudo, os japoneses produziam filmes parcialmente sonorizados, com a presença do benshi, um profissional que reproduzia os diálogos, interpretando as vozes dos vários personagens (uma espécie de dublador ao vivo).
 
A primeira produção importante surgiu em 1913: “Os 47 Ronins / Chushingura”. Com o fim da Primeira Guerra Mundial, o Japão abriu-se ao Ocidente, sendo invadido e influenciado por Hollywood. Nasce um cinema de clara inspiração ocidental, que valoriza os filmes históricos. A partir de 1937, com o início da guerra sino-japonesa, e em particular depois do bombardeamento de Pearl Harbor em 1941, o CINEMA JAPONÊS passa a estar a serviço da propaganda oficial.

kenji mizoguchi

Depois da Segunda Guerra Mundial, surgiriam diretores renovadores e uma cinematografia de qualidade que não parou de espantar o mundo. Em 1949, o mercado cinematográfico local tinha cerca de duas mil salas e quatro poderosos estúdios que dividiam a produção e distribuição de filmes: Toho, Shochiku, Daiei e Shin Toho (atual Toei). A Daiei especializou-se em dramas militares, de violência e sexo. A Shochiku produzia comédias, populares filmes de yakuza (os gangsteres japoneses) e musicais. A Toho fez história com filmes de época.

Em 1951, “Rashomon / Idem”, de Akira Kurosawa, levou o Leão de Ouro no Festival de Veneza. Pela primeira vez a Europa consagrava a cinematografia do país do sol nascente. Dois anos depois, “Portal do Inferno” receberia dois Oscars. A partir daí, obras de Kenji Mizoguchi (1898 – 1956. Hongo, Tóquio / Japão), Akira Kurosawa (1910 – 1993. Shinagawa, Tóquio / Japão) e Yasujirō Ozu (1903 - 1963. Fukagawa district / Japão), entre outros, atingiram uma popularidade inédita no estrangeiro.
 
O magnífico Kenji Mizoguchi iniciou-se no cinema ainda no período mudo. Inicialmente dedicado a filmes de samurais ou melodramas, tornou-se famoso pelo olhar poético com que trata os seus heróis atormentados, com uma especial dedicação às mulheres, figuras centrais na sua obra. Akira Kurosawa é sem dúvida o mais conhecido dos realizadores orientais. Com inspiração que podia ir de Shakespeare a John Ford, os seus personagens são dramáticos, cheios de falhas, mas prontos a desafiar a ordem estabelecida além das consequências.
akira kurosawa

Outros autores se destacaram nos anos 1950, conhecido como Era Dourada do CINEMA JAPONÊS. É o caso de Kaneto Shindô (1912 – 2012. Saeki District, Hiroshima / Japão), Kon Ichikawa (1915 – 2008. Ise, Mie / Japão), Masaki Kobayashi (1916 – 1996. Otaru, Hokkaido / Japão) e Mikio Naruse (1905 – 1969. Yotsuya, Tóquio / Japão). A produção tornou-se mais provocadora, incluindo filmes de tendência neo-realista.
 
Nos anos 1960 e 1970 assistiu-se ao advento de realizadores influenciados por novas linguagens cinematográficas. Esta geração, conhecida como “Nova Vaga”, inclui Nagisa Oshima (1932 – 2013. Tamano, Okayama / Japão), Shohei Imamura (1926 – 2006. Cidade de Tóquio / Japão) e Seijun Suzuki (1923 – 2017. Nihonbashi / Tóquio, Japão). Os seus filmes quebram com a tradição e modernizam a temática, com abordagens chocantes de sexo, criminalidade, minorias e anti-heróis, utilizando o surrealismo e narrativas menos convencionais.
 
Fã de carteirinha desta cinematografia, selecionei dez títulos imperdíveis. Confira.
 

DEZ FILMES JAPONESES
 
01
CONTOS da LUA VAGA
(Ugetsu monogatari, 1953)

Direção de Kenji Mizoguchi
Elenco: Machiko Kyô, Mitsuko Mito, Kinuyo Tanaka e Masayuki Mori
 

Nas margens de um lago, no século XVI assolada pela guerra civil, vivem dois casais ambiciosos. Eles rumam à cidade para vender seus produtos. Um dos maridos consegue dinheiro e parte em busca de fama, deixando a esposa cair na prostituição. Quanto ao outro, fica na cidade, enviando a mulher e o filho para casa. Mas esta é morta por bandidos, enquanto ele se deixa seduzir por um fantasma. 

Um jidai-geki (drama histórico do tempo dos samurais) tendo por base contos fantásticos de Akinari Ueda, de 1776. Entre o realismo histórico e a fantasia, o resultado é uma história comovente. Por ela passa todo um universo onírico. Fazendo uso de um tempo remoto, guerras, sentidos de honra e hierarquia que nos parecem estranhos, funciona tanto como um conto de fadas, como uma alegoria a algo tão próximo como a ambição desmedida, as ilusões e valorização da aparência.
 
02
ERA UMA VEZ em TÓQUIO
(Tokyo Monogatari, 1953)

Direção de Yasujiro Ozu
Elenco: Chishu Ryu, Chieko Higashiyama e Setsuko Hara

 
Um casal de idosos viaja para Tóquio para visitar os filhos. Eles não são bem recebidos, em um misto de indiferença e ingratidão. Obra-prima de grande sucesso, chamou a atenção no exterior para Ozu.  O estilo do diretor é inconfundível e, de uma certa maneira, anti-hollywoodiano. Realista, ancorado no quotidiano, nos pequenos acontecimentos. Causa um estranhamento inicial, mas, uma vez que aderimos ao universo do cineasta, dificilmente deixaremos de apreciar a beleza da sua arte.
 
Não há sentimentalismo, nada que seja excessivo. Mesmo assim, toca profundamente. Esse é um dos trabalhos mais sentimentais do diretor, um filme que permanece, mesmo quando acaba. Ele nos habita por muito tempo, nos faz refletir sobre a efemeridade da vida, sobre os relacionamentos, sobre o tempo que passa, sobre a morte. Clássico do cinema mundial, é de fato universal e atemporal.
 
03
PORTAL do INFERNO
(Jigokumon, 1953)

Direção de Teinosuke Kinugasa
Elenco: Machiko Kyô, Kazuo Hasegawa e Isao Yamagata

 
Após a reprimida revolta de 1159 no Japão, samurai é chamado pelo imperador para ser recompensado. Ele pede como prêmio a mão da dama de companhia da irmã do imperador. Só que ela é casada com outro samurai. No entanto, o pretendente não desiste, usando todos os expedientes ao seu dispor para procurá-la, afrontar seu marido ou até tentar obter os seus fins através do crime. Um filme marcante pelo uso da cor, planos de rara beleza e riqueza cromática.
 
Começando em cenário de guerra, com ação e tensão, logo investe na lentidão, onde a guerra é simplesmente interior. As vontades dos personagens são movidas por sentimentos de honra e dever. Tragédia sem possibilidade de redenção, recebeu Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1954, e ganhou dois Oscars: Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Guarda-roupa de Filme a Cores, bem como prêmio de Melhor Filme do Circículo dos Críticos de Cinema de Nova York.
 
04
TRONO MANCHADO de SANGUE
(Kumonosu-jô, 1957)

Direção de Akira Kurosawa
Elenco: Toshirô Mifune, Minoru Chiaki, Isuzu Yamada e Takashi Shimura

 
Instigado pela esposa e por ambição, samurai abre o caminho para o trono do castelo, inclusive matando aqueles que nele confiavam, e passando a viver atormentado pelo fantasma da traição. Kurosawa usou como inspiração a tragédia de Shakespeare, “MacBeth”, para construir uma história de paranoia, numa metáfora sobre o poder. Reina uma atmosfera irreal, de florestas encantadas, nevoeiros fantasmagóricos, espíritos malignos, espaços fechados e interpretações estilizadas.
 
Destaca-se o mais visceral dos atores japoneses, Toshiro Mifune, que nos transmite, do seu modo único, toda a sua convulsão interior. Esta é provocada por aparições, sonhos, medos e ambições nascentes, em muito alimentadas pela esposa, uma interpretação inesquecível de Isuzu Yamada. Sendo um filme intenso e austero, tem sido elogiado por críticos, que o consideram uma das mais fortes adaptações da peça de Shakespeare, apesar das suas evidentes liberdades.
 
05
FOGO na PLANÍCIE
(Nobi, 1959)

Direção de Kon Ichikawa
Elenco: Eiji Funakoshi, Mantarô Ushio e Yoshihiro Hamaguchi

 
Nas Filipinas, no início de 1945, a ofensiva norte-americana obriga à retirada japonesa. Um soldado, entre tantos que estão sem rumo ou objetivo perante a derrota das suas tropas, expulso do seu batalhão como doente, erra por uma ilha, encontrando companheiros, partilhando ou disputando comida, e assistindo a modos ilícitos desta partilha, a medos e desesperos, crime, loucura e até canibalismo. A sua trajetória é cheia de eventos que o fazem perder a esperança no ser humano.
 
Viagem pela loucura e pelo desespero da guerra. Filmado em cenários naturais e com fotografia que transmite extrema desolação, choca pelo realismo, pelo modo como não esconde os efeitos da guerra: doença, morte, escassez, fome, crime. Além disso, o desespero presente em cada rosto, em cada palavra, em cada gesto. Considerado um dos mais realistas filmes de guerra já filmados, recebeu vários prêmios internacionais, e ainda hoje choca pela força do seu discurso e das suas imagens.
 
06
KWAIDAN - As QUATRO FACES do MEDO
(Kwaidan, 1964)

Direção de Masaki Kobayashi
Elenco: Rentaro Mikuni, Michiyo Aratama e Tatsuya Nakadai

 
Quatro contos adaptados de tradicionais fábulas japonesas. Conquistou uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro – algo raro para uma obra de terror. Os contos são sustentados pelo talento estético de Kobayashi, a trilha sonora, o design de produção e a montagem. Primeiro filme colorido da carreira do diretor, em momentos pontuais ele e seu fotógrafo aplicam filtros azulados na iluminação para representar a chegada de espíritos, alterando a intensidade dos focos de iluminação.
 
Nesse cenário sobrenatural, de morte e fantasmas, três horas são investidas para apresentar o folclore japonês. Kobayashi é um artista ímpar e todos os segmentos são visualmente cativantes e inovadores, até mesmo flertando com temas ligados às quatro estações do ano, partindo do outono até o verão, mas também é realmente interessante como fenômeno cinematográfico.
 
07
A FACE do OUTRO
(Tanin no Kao, 1966)

Direção de Hiroshi Teshigahara
Elenco: Tatsuya Nakadai, Machiko Kyô e Mikijirô Hira

 
Com uma riqueza estilística magistral, transpõe para a tela simbolismos que permitem várias interpretações. No enredo, um homem fica com o rosto desfigurado e sente desmoronar seu relacionamento com a esposa. Por isso, aceita experimentar a invenção de um cientista: uma máscara que se molda ao rosto. Então, com a cara nova, decide testar a fidelidade da esposa, e bola um plano para seduzi-la.
 
Há uma trama paralela que se centra numa garota também com uma deformação no rosto. Solitária, ela tem uma transa incestuosa com seu irmão e a seguir se arrepende, tomando uma decisão radical. O filme questiona o quanto as pessoas colocam importância na aparência, quando o que mais importa é o que está no interior delas. As duas histórias defendem esse ponto. 
 
08
O GATO PRETO
(Yabu no Naka no Kuroneko, 1968)

Direção de Kaneto Shindô
Elenco: Kichiemon Nakamura, Nobuko Otowa e Kiwako Taichi

 
Duas mulheres são estupradas e assassinadas por um grupo de samurais em um local isolado. Retornando como espíritos, elas se vingam de toda a classe. Um jovem samurai, depois de violenta batalha, é convocado a exterminar a maldição. O texto é inspirado em contos de Rynosuke Akutagawa. Ao mesmo tempo que funciona como uma história de samurais é também uma aterradora narrativa de fantasmas.
 
Tambores e música do Teatro Bunraku criam a atmosfera macabra para nos preparar para o local mágico onde os espíritos vivem. A construção da obra é cuidadosa e pautada pelo silêncio. O misticismo não é óbvio. Como é comum no cinema japonês, é tratado como uma das camadas da existência. Entrelaçando o espiritualismo shintô e um quê de demoníaco, alcançou sucesso nas terras nipônicas.
 
09
A BALADA de NARAYAMA
(Narayama Bushiko, 1983)

Direção de Shohei Imamura
Elenco: Mitsuko Baisho, Nijiko Kiyokawa e Ken Ogata

 
No fim do século XIX, em um vilarejo, o morador que completa 70 anos de idade deve subir ao topo de uma sagrada montanha e aguardar a morte. Aquele que se recusa a cumprir a tradição traz a desonra para sua família. Tal medida garantia que os mais novos se dedicassem aos seus afazeres diários ao invés de cuidar de seus idosos e também atenuar a escassez de alimentos durante o inverno. No entanto, senhora de 69 anos só aceita morrer quando o seu filho mais velho estiver casado.
 
Duro e belo, nos reserva momentos brutais. Carregado de metáforas, aborda de forma sensível, mas também mordaz, a dualidade entre os sentimentos e o dever, a vida e a morte. Baseado no romance de Fukazawa Shichirō, ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes. Esta é a segunda adaptação do livro levada ao cinema, sendo a primeira dirigida por Kinoshita Keisuke em 1958.
 
10
TABU
(Gohatto, 1999)

Direção de Nagisa Oshima
Elenco: Takeshi Kitano, Ryûhei Matsuda e Shinji Takeda

 
O novo membro de uma unidade de milícia samurai causa distúrbios quando vários de seus colegas se apaixonam por ele, ameaçando perturbar o código rígido de seu esquadrão. Explorando a prática comum de wakashudo, em que um oficial samurai costumava levar seu jovem aprendiz como amante, Oshima descreve as emoções profundamente escondidas que surgem em um grupo de guerreiros, separados do resto do mundo, condenados apenas à sua própria companhia.
 
O diretor trata de tabus morais relacionados à homossexualidade, traição e prostituição no passado. Mostra as consequências de quebrar certas regras ou proibições na esfera erótica. Diferente e bonito, com uma trilha sonora impressionante e uma fotografia maravilhosa, a maior parte do drama se passa em ambientes fechados, em interiores sem excessos e escassamente mobiliados. O resultado é uma estética austera, mas estranhamente bela - e também muito masculina.
 

Um comentário:

Marcelo Castro Moraes disse...

Eu colocaria o primeiro Godzilla facilmente na lista, pois ele é um filme que sintetizava todos os temores que os japoneses tinham com relação as bombas nucleares.