No início
do século 20, o Japão fundou sua própria indústria cinematográfica retratando
aventuras de época sobre samurais injustiçados. Enquanto no mundo inteiro o
cinema ainda era mudo, os japoneses produziam filmes parcialmente sonorizados,
com a presença do benshi, um profissional que reproduzia os diálogos,
interpretando as vozes dos vários personagens (uma espécie de dublador ao
vivo). A
primeira produção importante surgiu em 1913: “Os 47 Ronins / Chushingura”. Com
o fim da Primeira Guerra Mundial, o Japão abriu-se ao Ocidente, sendo influenciado por Hollywood. Nasce um cinema de inspiração ocidental,
que valoriza os filmes históricos. A partir de 1937, com a guerra
sino-japonesa, e em particular depois do bombardeamento de Pearl Harbor em 1941,
o CINEMA JAPONÊS se põe a serviço da propaganda oficial.
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kenji mizoguchi |
Depois da Segunda Guerra Mundial, surgiriam diretores renovadores e uma cinematografia
de qualidade que não parou de espantar o mundo. Em 1949, o mercado
cinematográfico local tinha cerca de duas mil salas e quatro poderosos estúdios
que dividiam a produção e distribuição de filmes: Toho, Shochiku, Daiei e Shin
Toho (atual Toei). A Daiei especializou-se em dramas militares, de violência e
sexo. A Shochiku produzia comédias, filmes de yakuza (gangsteres) e musicais. A Toho fez história com filmes de época.
Em 1951, “Rashomon / Idem”, de Akira Kurosawa,
levou o
Leão de Ouro no Festival de Veneza. Pela primeira vez a Europa consagrava a cinematografia do país do sol nascente. Dois anos
depois, “Portal do Inferno” receberia dois Oscars. A
partir daí, obras de Kenji Mizoguchi (1898 – 1956. Hongo, Tóquio / Japão), Akira
Kurosawa (1910 – 1993. Shinagawa, Tóquio / Japão) e Yasujirō Ozu (1903 - 1963. Fukagawa
district / Japão), entre outros, atingiram uma popularidade inédita no
estrangeiro. O
magnífico Kenji Mizoguchi iniciou-se no cinema ainda no período mudo.
Inicialmente dedicado a filmes de samurais ou melodramas, tornou-se famoso pelo olhar
poético com que trata os seus heróis atormentados, com uma especial dedicação
às mulheres, figuras centrais na sua obra. Akira Kurosawa é o
mais conhecido dos realizadores orientais. Com inspiração que podia ir de
William Shakespeare a John Ford, seus personagens dramáticos estão prontos a desafiar a ordem estabelecida muito além das consequências.
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akira kurosawa |
Outros
autores se destacaram nos anos 1950, conhecido como Era Dourada do CINEMA
JAPONÊS. É o caso de Kaneto Shindô (1912 – 2012. Saeki District, Hiroshima /
Japão), Kon
Ichikawa (1915 – 2008. Ise, Mie / Japão), Masaki Kobayashi (1916 – 1996. Otaru,
Hokkaido / Japão) e Mikio Naruse (1905 – 1969. Yotsuya, Tóquio / Japão). A produção tornou-se mais provocadora, incluindo filmes de evidente tendência neo-realista.
Nos anos 1960
e 1970 assistiu-se ao advento de realizadores influenciados por novas
linguagens cinematográficas. Esta geração, conhecida como “Nova Vaga”, inclui Nagisa Oshima (1932 – 2013. Tamano, Okayama / Japão), Shohei Imamura (1926 –
2006. Cidade de Tóquio / Japão) e Seijun Suzuki (1923 – 2017. Nihonbashi /
Tóquio, Japão). Os seus filmes quebram com a tradição e modernizam a temática,
com abordagens sexuais, criminalidade, minorias e anti-heróis,
utilizando o surrealismo ou narrativas pouco convencionais. Fã de carteirinha desta cinematografia, selecionei dez títulos imperdíveis. Confira.
DEZ FILMES JAPONESES
01
CONTOS da LUA VAGA
(Ugetsu monogatari, 1953)
direção de Kenji Mizoguchi
elenco: Machiko Kyô, Mitsuko Mito, Kinuyo Tanaka e Masayuki Mori
Nas margens de um lago, no século XVI assolada
pela guerra civil, vivem dois casais ambiciosos. Eles rumam à cidade para
vender seus produtos. Um dos maridos consegue dinheiro e parte em busca de
fama, deixando a esposa cair na prostituição. Quanto ao outro, fica na
cidade, enviando a mulher e o filho para casa. Mas esta é morta por
bandidos, enquanto ele se deixa seduzir por um fantasma. Um jidai-geki (drama
histórico do tempo dos samurais) tendo por base contos fantásticos
de Akinari Ueda, de 1776. Entre o realismo histórico e a fantasia, o
resultado é uma história comovente. Por ela passa todo um universo onírico.
Fazendo uso de um tempo remoto, guerras, sentidos de
honra e hierarquia, funciona como um conto de
fantasmas ou uma alegoria a algo tão próximo como a ambição desmedida, as
ilusões e valorização da aparência.
02
ERA UMA VEZ em TÓQUIO
(Tokyo Monogatari, 1953)
direção de Yasujiro Ozu
elenco: Chishu Ryu, Chieko Higashiyama e Setsuko Hara
Um casal de idosos viaja para Tóquio para
visitar os filhos. Eles não são bem recebidos, em um misto de indiferença e
ingratidão. Obra-prima de grande sucesso, chamou a atenção no exterior para Ozu. O estilo do diretor é
inconfundível e, de uma certa maneira, anti-hollywoodiano. Realista, ancorado no quotidiano, nos pequenos acontecimentos. Causa um estranhamento inicial, mas, uma vez que aderimos ao universo do cineasta,
dificilmente deixaremos de apreciar a beleza da sua arte. Não há sentimentalismo, nada que seja excessivo.
Mesmo assim, toca profundamente. Esse é um dos trabalhos mais
sentimentais do diretor, um filme que permanece, mesmo quando acaba. Ele nos
habita por muito tempo, nos faz refletir sobre a efemeridade da vida, sobre os
relacionamentos, sobre o tempo que passa, sobre a morte.
03
PORTAL do INFERNO
(Jigokumon, 1953)
direção de Teinosuke Kinugasa
elenco: Machiko Kyô, Kazuo Hasegawa e Isao Yamagata
Após a reprimida revolta de 1159 no Japão,
samurai é chamado pelo imperador para ser recompensado. Ele pede como prêmio a mão da dama de companhia da irmã do imperador. Só que ela é casada com outro samurai. No entanto, o pretendente não desiste, usando todos
os expedientes ao seu dispor para procurá-la, afrontar seu marido ou até tentar
obter os seus fins através do crime. Um filme marcante pelo uso da cor, planos
de rara beleza e riqueza cromática. Começando em cenário de guerra, com ação e
tensão, logo investe na lentidão, onde a guerra é simplesmente interior. As
vontades dos personagens são movidas por sentimentos de honra e dever. Tragédia
sem possibilidade de redenção, recebeu Palma de Ouro no Festival de Cannes de
1954, e ganhou dois Oscars: Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Guarda-roupa de
Filme a Cores, bem como prêmio de Melhor Filme do Círculo dos Críticos de
Cinema de Nova York.
04
TRONO MANCHADO de SANGUE
(Kumonosu-jô, 1957)
direção de Akira Kurosawa
elenco: Toshirô Mifune, Minoru Chiaki, Isuzu Yamada e Takashi Shimura
Instigado pela esposa e por ambição, samurai abre o caminho para o trono do castelo, inclusive matando aqueles que nele confiavam, e passando a viver atormentado
pelo fantasma da traição. Kurosawa usou como inspiração a tragédia de
Shakespeare, “MacBeth”, para construir uma história de paranoia, numa metáfora
sobre o poder. Reina uma atmosfera irreal, de florestas encantadas,
nevoeiros fantasmagóricos, espíritos malignos, espaços fechados e
interpretações estilizadas. Destaca-se o mais visceral dos atores
japoneses, Toshiro Mifune, que nos transmite, do seu modo único, toda a sua
convulsão interior. Esta é provocada por aparições, sonhos, medos e ambições, em muito alimentadas pela esposa, uma interpretação inesquecível de
Isuzu Yamada. Intenso e austero, tem sido elogiado por críticos,
que o consideram uma das mais fortes adaptações da peça de Shakespeare, apesar
das evidentes liberdades.
05
FOGO na PLANÍCIE
(Nobi, 1959)
direção de Kon Ichikawa
elenco: Eiji Funakoshi, Mantarô Ushio e Yoshihiro Hamaguchi
Nas Filipinas, no início de 1945, a ofensiva norte-americana
obriga à retirada japonesa. Um soldado, entre tantos que estão sem rumo ou objetivo
perante a derrota das suas tropas, expulso do seu batalhão como doente, erra por uma ilha, encontrando companheiros, partilhando ou disputando
comida, e assistindo a modos ilícitos desta partilha, a medos e desesperos,
crime, loucura e até canibalismo. A sua trajetória é cheia de eventos
que o fazem perder a esperança no ser humano. Viagem pela
loucura e pelo desespero da guerra. Filmado em cenários naturais e com fotografia que transmite extrema desolação, choca pelo realismo, pelo modo
como não esconde os efeitos da guerra: doença, morte, escassez, fome,
crime. Além disso, o desespero presente em cada rosto, em cada
palavra, em cada gesto. Um dos mais realistas filmes de guerra, recebeu prêmios internacionais, e choca pela força do seu discurso e das imagens.
06
KWAIDAN - As QUATRO FACES do MEDO
(Kwaidan, 1964)
direção de Masaki Kobayashi
elenco: Rentaro Mikuni, Michiyo Aratama e Tatsuya Nakadai
Quatro contos adaptados de tradicionais
fábulas japonesas. Conquistou uma indicação ao Oscar de
Melhor Filme Estrangeiro – algo raro para uma obra de terror. Os contos são sustentados pelo talento estético de Kobayashi, a trilha
sonora, o design de produção e a montagem. Primeiro filme colorido da
carreira do diretor, em momentos
pontuais ele e seu fotógrafo aplicam filtros azulados na iluminação para
representar a chegada de espíritos, alterando a intensidade dos focos de
iluminação. Nesse cenário sobrenatural, de morte e
fantasmas, três horas são investidas para apresentar o folclore
japonês. Kobayashi é um grande cineasta e todos os segmentos são cativantes, inovadores e flertam com as quatro
estações do ano, partindo do outono até o verão.
07
A FACE do OUTRO
(Tanin no Kao, 1966)
direção de Hiroshi Teshigahara
elenco: Tatsuya Nakadai, Machiko Kyô e Mikijirô Hira
Com uma riqueza estilística magistral, transpõe
para a tela simbolismos que permitem várias interpretações. No enredo, um homem
fica com o rosto desfigurado e sente desmoronar seu relacionamento com a esposa.
Por isso, aceita experimentar a invenção de um cientista: uma máscara que se
molda ao rosto. Então, com a cara nova, decide testar a fidelidade da
esposa, e bola um plano para seduzi-la. Há uma trama paralela que se centra numa garota também com uma deformação no rosto. Solitária, ela tem uma transa
incestuosa com seu irmão e a seguir se arrepende, tomando uma decisão radical. O filme
questiona o quanto as pessoas colocam importância na aparência, quando o que
mais importa é o que está no interior delas. As duas histórias defendem esse
ponto.
08
O GATO PRETO
(Yabu no Naka no Kuroneko, 1968)
direção de Kaneto Shindô
elenco: Kichiemon Nakamura, Nobuko Otowa e Kiwako Taichi
Duas mulheres são estupradas e assassinadas
por um grupo de samurais em um local isolado. Retornando como espíritos, elas
se vingam de toda a classe. Um jovem samurai, depois de violenta batalha, é
convocado a exterminar a maldição. O texto é inspirado em contos de Rynosuke
Akutagawa. Ao mesmo tempo que funciona como uma história de samurais é também
uma aterradora narrativa de fantasmas. Tambores e música do Teatro Bunraku criam uma
atmosfera macabra, nos preparando para o
local onde os espíritos vivem. A construção é cuidadosa e pautada pelo silêncio. Como é típico no cinema japonês, o misticismo é tratado como uma das camadas da existência. Entrelaçando o
espiritualismo shintô e o demoníaco, fez grande sucesso.
09
A BALADA de NARAYAMA
(Narayama Bushiko, 1983)
direção de Shohei Imamura
elenco: Mitsuko Baisho, Nijiko Kiyokawa e Ken Ogata
No fim do século XIX, em um vilarejo, o morador que completa 70 anos de idade deve subir ao topo de uma
sagrada montanha e aguardar a morte. Aquele que se recusa a cumprir a
tradição traz a desonra para sua família. Tal medida garantia que os mais novos se dedicassem aos seus afazeres diários ao invés de cuidar de seus idosos e também atenuar a escassez de alimentos
durante o inverno. No entanto, senhora de 69 anos só aceita morrer quando o
seu filho mais velho estiver casado. Duro e belo, nos reserva momentos
brutais. Carregado de metáforas, aborda de forma sensível, mas também mordaz, a dualidade entre os sentimentos e o dever, a vida e a morte. Baseado
no romance de Fukazawa Shichirō, ganhou a Palma de
Ouro no Festival de Cannes.
10
TABU
(Gohatto, 1999)
direção de Nagisa Oshima
elenco: Takeshi Kitano, Ryûhei Matsuda e Shinji Takeda
O novo membro de uma unidade de milícia
samurai causa distúrbios quando vários de seus colegas se apaixonam por ele,
ameaçando perturbar o código rígido de seu esquadrão. Explorando a
prática comum de wakashudo, em que um oficial samurai costumava levar seu jovem
aprendiz como amante, Oshima
descreve as emoções profundamente escondidas que surgem em um grupo de guerreiros,
separados do resto do mundo, condenados apenas à sua própria companhia. O diretor trata de tabus morais relacionados à homossexualidade, traição e prostituição no passado. Mostra as consequências de quebrar
certas regras ou proibições na esfera erótica. Diferente e bonito, com
uma trilha sonora impressionante e uma fotografia maravilhosa, a maior parte do drama se passa em ambientes fechados, em interiores sem excessos e
escassamente mobiliados. O resultado é uma estética austera, bela e muito masculina.