outubro 30, 2016

***** PEQUENA HISTÓRIA do CINEMA BRASILEIRO

limite de mário peixoto

 
Uma ideia na cabeça e uma câmera na mão.
GLAUBER ROCHA


A indústria cinematográfica brasileira arrasta há anos os mesmos problemas: dificuldade em captar recursos, roteiros capengas, direção amadora ou convencional, figuração comprometedora e exibição restrita. Mas merece ser garimpada. Eu o conheça desde que me entendo por gente e, ainda menino, colecionava fotografias e cartazes, e nas sessões da tarde na Globo ria vendo as ingênuas chanchadas de Oscarito-Grande Otelo e as comédias caipiras de Amácio Mazzaropi. Ainda na TV, não perdia as produções da Vera Cruz, admirando “O Cangaceiro” (1952), de Lima Barreto, o primeiro filme brasileiro a obter êxito internacional, e “Sinhá Moça” (1953), de Tom Payne, com Eliane Laje, Anselmo Duarte e Ruth de Souza. A produção de época, versão do romance de Maria Dezonne Pacheco, ganhou o Urso de Prata no Festival de Berlim.

grande otelo e oscarito
Na condição de cinéfilo, jornalista e comentarista da sétima arte, sempre estive interessado no CINEMA BRASILEIRO e procuro abordar, com justeza e imparcialidade, a sua trajetória de altos e baixos. Adolescente, descobri Bruno Barreto, Carlos Diegues e Arnaldo Jabor, e muito escrevi sobre eles na época. De Bruno assisti com prazer “A Estrela Sobe” (1974) e “Dona Flor e seus Dois Maridos” (1976). Ainda me lembro do frescor erótico de José Wilker e Sonia Braga. Diegues se esforça, acertando mais ou menos em “Xica da Silva” (1976) e “Chuvas de Verão” (1977). No entanto, o seu melhor trabalho, “Bye Bye Brasil” (1979), é um dos bons filmes da cinematografia nacional.

De carreira curta e densa, Jabor brilha nos nelsonrodriguianos Toda Nudez Será Castigada” (1973) e “O Casamento” (1975), e no sensual “Eu Te Amo” (1980). “Eu Sei Que Vou Te Amar” (1984), centrado nas lembranças e discussões de um jovem casal recém-separado, levou prêmio em Cannes de Melhor Atriz para Fernandinha Torres. Realmente lamentável a troca do diretor, de cinema inteligente por um jornalismo de olho no próprio umbigo.  Em 2010 ele voltou a filmar, mas “A Suprema Felicidade” não foi bem recebido. No Centro de Estudos Brasileiros, em Barcelona, assisti expressivos filmes nossos, inclusive o pioneiro Humberto Mauro e seus “Brasa Dormida” (1928) e “Ganga Bruta” (1932). Discordo do título de “nossos maiores cineastas” dado pelos especialistas a Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, nem considero que o cinema nacional atravessa uma fase radiante, depois dos anos duros pós-extinção da Embrafilme pelo governo Collor de Mello. Produção periódica não significa qualidade.

glauber rocha
Autor da obra-prima “Deus e o Diabo na Terra do Sol (1963), Glauber se deixou possuir nele pelo russo Sergei Eisenstein. Revela chispas de genialidade em “Barravento” (1961), “Terra em Transe” (1966) e “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” (1968). Mas o seu último trabalho, “A Idade da Terra” (1980), não passa de um quebra-cabeças neurótico e desconexo. Nelson Pereira dos Santos comove no sóbrio “Vidas Secas” (1963), na comédia “Como Era Gostoso o meu Francês” (1970) e no drama baseado em Graciliano Ramos, “Memórias do Cárcere” (1983). O resto aborrece, inclusive as artificiais adaptações de Jorge Amado, “Tenda dos Milagres” (1977) e “Jubiabá” (1986).

Nos anos 1960, o Cinema Novo despiu o país, teve prestígio no mercado internacional e arrebatou prêmios em festivais. Soube conciliar forte invenção cinematográfica com análise funda de conjunturas sociais. Nesta década do clássico “O Pagador de Promessas” (1962), de Anselmo Duarte, Palma de Ouro em Cannes, surgiram dramas irreverentes dirigidos por Ruy Guerra (“Os Cafajestes”, 1961, e “Os Fuzis”, 1963); Paulo César Saraceni (“Porto das Caixas”, 1962); Luís Sérgio Person (“São Paulo S/A”, 1964, e “O Caso dos Irmãos Naves”, 1967), Walter Hugo Khouri (“Noite Vazia”, 1964), Joaquim Pedro de Andrade (“O Padre e a Moça”, 1965, e “Macunaíma”, 1969), Roberto Santos (“A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, 1965), Maurice Capovilla (“Bebel, a Garota Propaganda”, 1967), Ozualdo Candeias (“A Margem”, 1967), Antonio Carlos Fontoura (“Copacabana me Engana”, 1968) e Gustavo Dahl (“O Bravo Guerreiro”, 1968).

O Cinema Novo dividiu a classe cinematográfica e, na maior parte dos casos, esvaziou as salas de projeção. A origem do nosso cinema experimental, investindo em possibilidades incomuns, tinha começado décadas antes, no vertiginoso “Limite” (1930), com produção, roteiro, direção e montagem de Mário Peixoto. Do mesmo período, lembro-me do realismo sertanejo, da caatinga, Lampião e seu grupo filmados pelo mascate sírio Benjamim Abraão Jacó. Imagens perturbadoras, luz solar estourada. Mais adiante, o documentário se destacaria em “O País de São Saruê(1971), de Vladimir Carvalho, e “Cabra Marcado para Morrer” (1984), de Eduardo Coutinho, entre outros.

Até o final dos anos 1940, o amadorismo do CINEMA BRASILEIRO era visível em roteiristas, técnicos e intérpretes. Quase tudo era na base do improviso. Fotografava-se mal e o som gravado era inaudível. Exploravam-se os musicais, comédias de sucesso no teatro e melodramas folhetinescos. A criatividade superava entraves, mas, na maior parte, a qualidade deixava a desejar. Nos anos 1950, o cinema pomposo invadiu o Brasil, marcando o início da industrialização em moldes de Hollywood. Nasceu a Companhia Cinematográfica Vera Cruz. “O Quatrilho” (1995) tem o estilo desse estúdio de produções afetadas. A figura maior da Vera Cruz, Alberto Cavalcanti, cineasta brasileiro valorizado na Europa desde o cinema mudo, assumiu a direção geral de produção, supervisionou a construção dos estúdios, lançou diversos atores e trouxe profissionais ingleses, franceses e austríacos. Depois montou sua própria produtora, Kino Filmes, realizando três filmes, entre eles, “O Canto do Mar” (1953).

Abrindo caminho para o Cinema Novo, “Rio 40 Graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos, foi recebido com elogios. Influenciado pelo neo-realismo italiano, o CINEMA BRASILEIRO finalmente encontrava sua identidade, ultrapassando os interesses do mercado e investindo na inquietação artística. Pedra fundamental do movimento cinemanovista, o drama de episódios “Cinco Vezes Favela” (1961), lançou prometedores cineastas: Marcos Faria (“O Favelado”), Miguel Borges (“Zé da Cachorra”), Carlos Diegues (“Escola de Samba Alegria de Viver”), Joaquim Pedro de Andrade (“Couro de Gato”) e Leon Hirszman (“Pedreira de São Diogo).

helena ignez e paulo villaça
em o bandido da luz vermelha
No final de 1960 e parte de 1970, foi muito falado o radical e alegórico Cinema Marginal ou da Boca do Lixo, ou ainda Cinema do Terceiro Mundo. Rogério Sganzerla (“O Bandido da Luz Vermelha”, 1968), Júlio Bressane (“Matou a Família e foi ao Cinema”, 1969), Andréa Tonacci (“Bang Bang”, 1971) e Carlos Reichenbach (“Amor Palavra Prostituta”, 1979) são os nomes mais conhecidos deste movimento. A Belair, produtora de Bressane e Sganzerla, realizou uma série de filmes de baixo custo, feitos em esquema ágil de produção. Na década de 1970, multiplicaram-se os filmes. O cinema dito de esquerda alimentava-se das verbas do Instituto Nacional do Cinema e, depois, da Embrafilme. Produtores uniram a chulice ao erotismo, e lançaram a pornochanchada. 
 
Entretanto, esta época não foi de toda negativa, revelando clarões inspirados em “A Casa Assassinada” (1970), de Paulo César Saraceni, do romance de Lúcio Cardoso; “Os Deuses e os Mortos” (1970), de Ruy Guerra; “A Rainha Diaba” (1971), de Antônio Carlos Fontoura, com interpretação antológica de Milton Gonçalves; “Os Inconfidentes” (1971) e “Guerra Conjugal” (1974), adaptado de contos de Dalton Trevisan, de Joaquim Pedro de Andrade; o notável “São Bernardo” (1971), de Leon Hirszman; “Tati, a Garota” (1972), de Bruno Barreto; “Morrer de Amor” (1972), de Jorge Ileli; “Os Condenados” (1973), de Zelito Viana, do livro de Oswald de Andrade; “Lição de Amor” (1975), de Eduardo Escorel; “Marília e Marina” (1976), de Luiz Fernando Goulart; “Gordos e Magros” (1976), de Mário Carneiro; e o desconcertante “A Lira do Delírio” (1977), de Walter Lima Jr. 

zezé motta em xica da silva
O nosso mais famoso cineasta, o baiano Glauber Rocha, encerrado numa fábula selvagem, morreu jovem, em 1981, aos 42 anos, depois de exílio voluntário em Sintra, Portugal. Nessa época não havia mais a câmara na mão, em movimento, oscilando. Um momento cinematográfico infértil, destacando-se nas trevas Arnaldo Jabor e o argentino Hector Babenco em “Pixote – A Lei do Mais Fraco” (1981), obra que seduziu plateias e abriu as portas do mercado internacional para o seu diretor, graças a uma história realista e fabulosa atuação de Marília Pêra como a prostituta Suely.

Ainda nos anos 1980, a direção de Ícaro Martins e José Antônio Garcia em “O Olho Mágico do Amor” (1981); Leon Hirszman no contundente “Eles não Usam Black-tie” (1981); Walter Lima Jr no cândido “Inocência” (1982); Carlos Alberto Prates Correia em “Noites do Sertão” (1983), adaptado de “Buriti” de Guimarães Rosa; André Klotzel no satírico “A Marvada Carne” (1985); Suzana Amaral em “A Hora da Estrela” (1985); Wilson Barros em “Anjos da Noite” (1986); Caetano Veloso no godarniano “O Cinema Falado” (1986); Sérgio Toledo em “Vera” (1986); Sérgio Bianchi no cínico “Romance” (1987); Bruno Barreto em “Romance da Empregada” (1987); e José Antônio Garcia em “O Corpo” (1989), do conto de Clarice Lispector. Sem a Embrafilme nos anos 1990, rodaram unicamente 14 produções em três anos. Com o sucesso do escrachado “Carlota Joaquina - Imperatriz do Brasil” (1995), de Carla Camuratti, acolhendo mais de um milhão de espectadores, criou-se o buxixo do renascimento do CINEMA BRASILEIRO. A obra não passa de uma comédia amadora, esquecível. 
 
Além de Camuratti, o nosso cinema foi pilotado por outras mulheres: Gilda de Abreu, Teresa Trautman, Norma Benguell, Tizuka Yamasaki, Sandra Werneck. Entre todas elas, destaco a sensibilidade e boas intenções de Ana Carolina (“Amélia”, 1997), Suzana Amaral, Daniela Thomas, Tata Amaral (“Um Céu de Estrelas”, 1996), Monica Gardemberg (“Jenipapo”, 1996), Eliana Caffé (“Kenoma”, 1998), Lucia Murat (“Brava Gente Brasileira”, 2000), Laís Bodanski (“Bicho de Sete Cabeças”, 2000) e Lina Chamie (“Tônica Dominante”, 2001). Pouco comentado, Ugo Giorgetti (“Sábado”, 1995) contribui para a história do nosso cinema. O conjunto da sua obra tem compromisso com a geografia de São Paulo. Em “Uma Outra Cidade”, para a tevê Cultura, descreve a metrópole a partir de cinco poetas: Roberto Piva, Jorge Mautner, Rodrigo de Haro, Cláudio Willer e Antonio Fernando De Franceschi. Walter Salles rodou com sensibilidade Terra Estrangeira” (1995) e “O Primeiro Dia” (1998), ambos em colaboração com Daniela Thomas. Seu “Central do Brasil” (1997) levou o Urso de Ouro no Festival de Berlim, o Globo de Ouro, o BAFTA e mais 52 prêmios internacionais. “Abril Despedaçado” (2001), também dele, versão do livro do albanês Ismail Kadaré, revela-se lírico.

luiz carlos vasconcelos 
em baile perfumado
Nos 1990 e nos primeiros anos do novo milênio, gosto especialmente de “A Ostra e O Vento” (1997) de Walter Lima Jr., “Baile Perfumado” (1997), dos estreantes pernambucanos Paulo Caldas e Lírio Ferreira; e “O Coração Iluminado” (1998), de Hector Babenco. Djalma Limongi Batista (“Bocage, o Triunfo do Amor”, 1997), Sérgio Resende (“A Guerra de Canudos”, 1998) e Flávio R. Tambellini (“Bufo & Spallanzani”, 2000) sempre foram cineastas de olho principalmente na bilheteria. Aluísio Abranches (“Um Copo de Cólera”, 1998), Roberto Santucci Filho (“Bellini e a Esfinge”, 2001) e Beto Brandt (“O Invasor”, 2002) não desenvolveram a carreira.

Neste início da primeira década do século XXI, uma proliferação de produções enfadonhas e previsíveis. Salvam-se o encanto cômico de “Domésticas – O Filme” (2001), de Fernando Meireles e Nando Olival; o sensível e arrebatador “Lavoura Arcaica” (2001), de Luiz Fernando Carvalho; o expressivo “Carandiru” (2003), de Hector Babenco; e “Amarelo Manga” (2003), de Cláudio Assis. Tempo também de Guel Arraes (“O Auto da Compadecida”, 2000, e “Caramuru – A Invenção do Brasil”, 2001), apostando na estética, mas escorregando no arremedo televisivo; Carlos Gerbase (“Tolerância”, 2000); da competência de Andrucha Waddington no sucesso de “Eu Tu Eles” (2000); e Jorge Furtado (“Houve uma Vez Dois Verões”, 2001), que ainda nos deve o filme honesto que esperamos dele, vinte e sete anos depois do aclamado curta “Ilha das Flores” (1989).

lázaro ramos em madame satã
Nos anos seguintes, alguns filmes fizeram história: “Cidade de Deus” (2002), de Fernando Meirelles e Kátia Lund; Madame Satã” (2002), de Karim Ainouz; “Lua Cambará – Nas Escadarias do Palácio” (2002), de Rosemberg Cariry; “Nina” (2004), de Heitor Dhalia; “Cidade Baixa” (2005), de Sérgio Machado; “Casa de Areia” (2005), de Andrucha Waddington; “Cinema, Aspirinas e Urubus” (2005), de Marcelo Gomes; “Estômago” (2007), de Marcos Jorge; “Tropa de Elite 1 e 2” (2007 e 2010), de José Padilha; “Feliz Natal” (2008), de Selton Mello; “Linha de Passe” (2008), de Walter Salles e Daniela Thomas; “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” (2009), de Marcelo Gomes e Karim Ainouz;A Festa da Menina Morta” (2009), de Matheus Nachtergaele; “O Palhaço” (2011), de Selton Mello; “A Febre do Rato” (2011), de Cláudio Assis; “O Som ao Redor” (2012), de Kleber Mendonça Filho; “Tatuagem” (2013), de Hilton Lacerda; “O Lobo Atrás da Porta” (2013), de Fernando Coimbra; e “Meu Amigo Hindu” (2015), de Hector Babenco.

A despeito de esforços individuais, poucas produções atuais escapam do convencional. Temos diretores competentes, atores que dão conta do recado e maravilhosos fotógrafos, mas ainda não encontramos o caminho viável, libertário e talentoso.  Somos o país do carnaval, o país do futebol, o país da telenovela. A sensualidade é nossa, o deboche é nosso. O CINEMA BRASILEIRO reflete isso muito bem: a realidade escandalosamente surreal e escapista. Portanto, mesmo com desacertos, palmas para nossos filmes. Não se pode definir as perspectivas d e um futuro próximo. No momento, passamos mais uma crise das tantas pelas quais tem passado esta brincadeira cara e frágil, esta mescla de arte, indústria e divertimento inigualável – um sonho sem fim. 
 
Fonte
“História Ilustrada dos Filmes Brasileiros: 1929-1988”
de Salvyano Cavalcanti de Paiva
 
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outubro 16, 2016

***** A IMPORTÂNCIA de SER CATHERINE DENEUVE




Entrevista que fiz no auditório da FNAC, 
Barcelona, Espanha, em 2002
publicada em jornais e revistas do Brasil e Portugal
faz parte do livro “ArtePalavra – Conversas no Velho Mundo”.


Perturbado, entre a comoção e o nervosismo, observei atentamente a estrela madura e elegante, que um dia a revista “Look” batizou como “a atriz mais bela do mundo”, concluindo que ela conserva intacto o fascínio aristocrático. Respirei fundo, seguindo seus movimentos e esperando a hora de iniciar a conversa. O local do nosso encontro estava lotado de jornalistas, fotógrafos e muitos convidados. A impressão é que estava diante de um monumento vivo, um monumento de rara beleza. Debutando no cinema em 1957, aos 14 anos, CATHERINE DENEUVE projetou-se em 1963 como a co-protagonista de “Vício e Virtude / Le Vice et la Vertu, do seu pigmalião e amante Roger Vadim (ex-Brigitte Bardot e futuro Jane Fonda). Nascida em Paris, 1943, filha de atores de teatro e irmã da também atriz Françoise Dorléac, que morreu num acidente de carro aos 25 anos, ganhou duas vezes o prêmio César de Melhor Atriz, obteve uma nomeação ao Oscar de Melhor Atriz e levou um prêmio no Festival de Veneza.

Construiu uma carreira arriscada, selecionada, sólida e brilhante, filmando com grandes cineastas como Jacques Demy, Roman Polanski, Luis Buñuel, Mario Monicelli, François Truffaut e André Téchiné, entre outros. Admirada no mundo inteiro, a atriz é um ícone. Resguardada, durante a entrevista limitou-se aos cumprimentos de gentileza e às respostas curtas e contundentes. O corpo é pequeno, enxuto. Os passos curtos e rápidos, equilibrados em saltos altíssimos. Vestida em um Saint-Laurent negro e adornada por uma manta de pele, CATHERINE DENEUVE conserva a beleza em cada linha do rosto, na sofisticação natural, no porte de diva.

Gérard Depardieu disse que a senhora é a mulher que ele queria ser, e na verdade muita gente compartilha esse desejo com ele.

Não exagere, mocinho. De qualquer forma, não gosto de ser modelo de ninguém, porque creio que ninguém deve ser modelo de quem quer que seja. Cada um deve parecer consigo mesmo. Mas Gérard, como o senhor, são muito gentis. De qualquer forma, não creio que mereça ser copiada, não sou feliz, embora tenha vivido muitos momentos felizes. Tenho um caráter melancólico.

São admiradores da personalidade notável e da beleza intacta que ilumina as telas e capas de revistas desde o final dos anos 1950.

Estou cansada da minha suposta beleza em primeiro plano, principalmente da dita “beleza fria”, que pouco tem a ver comigo. A beleza pode ser um grande fardo, pode ter certeza. Felizmente nunca me consideraram uma estúpida. O consolo que tenho na maturidade, ao perder a beleza física, é que finalmente lembraram a boa atriz que sempre fui.

O seu talento é reconhecido desde “A Bela da Tarde”... Em relação ao que desabafou, fiquei surpreso com a assumida melancolia.

Tenho uma tendência grande para a melancolia, principalmente quando o passado me vem à memória. Sei que fui muito mimada pela vida, construí uma bela carreira, mas não creio que exista a felicidade. Existem momentos felizes que passam rápidos.

Eu a imagino como uma artista focada em sua profissão, e como ela é muito bem sucedida, acredito que dificilmente algo abala o seu bem-estar.

Não é bem assim. A carreira nunca esteve em primeiro plano na minha vida. Sempre me preocupei mais com meus amigos e família, principalmente meus filhos. Nunca hesitei em deixar de lado uma boa oportunidade profissional por uma questão pessoal, íntima. Eu gosto do mundo do cinema. É o meu trabalho, e faço o melhor que posso, mas a felicidade encontro nos meus filhos, nos meus amores e nos amigos.

catherine e marcello mastroianni
É conhecida por preservar a intimidade. Nunca fala dos seus romances com Truffaut, Vadim, Mastroianni ou David Bailey. Tampouco sobre seus filhos.

Esforço-me para preservar a intimidade e não me arrependo. Eu tenho dificuldades em revelar-me, inclusive nas telas. Há na construção de cada personagem um mistério, uma imagem lutando para não se entregar por inteiro ao público sedento da verdade imediata. Revelar-me é sempre um desafio. Não é o que prefiro, mas é o que aceito quando é decisivo para a construção do personagem. Estou disponível para isso, embora comece com uma certa relutância.

Ainda se lembra do seu primeiro sucesso?

Evidente que lembro, mesmo passados quase 40 anos. Eu era bastante nova, tinha uns 21 anos e tive a felicidade de atuar em “Os Guarda-Chuvas do Amor”, premiado com a Palma de Ouro em Cannes... Ah, bons tempos, Demy era único.

É o seu diretor favorito?

Filmei com grandes cineastas. Demy, como Truffaut, não era apenas diretor de filmes, mas também um lutador de posições fortes. Eles fazem falta no cinema atual.

catherine e roger vadim
Vi recentemente “Os Ladrões” e fiquei impressionado com sua Marie.

Téchiné é um diretor que procura a alma dos personagens. “Os Ladrões” é um filme difícil, que fala da solidão, da incomunicabilidade dos sentidos, dos jogos do desejo. A Marie é tocada pela tragédia, transfigurada pelo desejo, e quando já não há desejo, é mesmo o fim de tudo. É um personagem dramático e solitário.

Acaba de filmar “A Vingança do Mosqueteiro”. Significa que finalmente resolveu trabalhar em Hollywood?

 
Na época de “Fome de Amor” recebi propostas tentadoras para atuar em superproduções hollywoodianas, e preferi continuar filmando na Europa. Muitos disseram que era uma decisão irracional, mas foi sensata. Lá jamais me ofereceriam um papel ousado como o de “Os Ladrões”. Com a idade que tenho, caso estivesse no cinema norte-americano, não me ofereceriam trabalho, e se o fizessem não seriam papéis dignos.

Qual o seu papel na comédia de sucesso “Oito Mulheres”?

as irmãs françoise 
dorléac e catherine
Tudo se passa numa distante mansão, às vésperas do Natal. Faço Gaby, a esposa do proprietário que foi assassinado e uma das suspeitas do crime. François (Ozon) desejava filmar “As Mulheres”, o clássico de Cukor somente interpretado por atrizes, e como não foi possível, agarrou-se com unhas e dentes ao texto teatral de Robert Thomas. Neste filme ele presta um tributo às estrelas dos anos 50. O meu personagem tem um toque de glamour e vulnerabilidade resgatado de Lana Turner.
O elenco conta com Fanny Ardant, Isabelle Huppert, Emmanuelle Béart, Danielle Darrieux... Não houve problemas nas filmagens nessa junção de tantas estrelas?

Felizmente não. As filmagens foram tranquilas. Sem atos invejosos, ciumeiras ou atritos. Houve uma extraordinária dinâmica de grupo e não tive a sensação de estar comprometendo as companheiras com a minha atuação. O mesmo aconteceu com todas as atrizes. Afinal, não tínhamos do que reclamar, pois todos os personagens são ricos, fortes, cheios de referências e com seu momento de destaque.

Obrigado por sua atenção e gentileza.

Vai ficar para a exibição de “Oito Mulheres”? Espero que aprecie.


  DEZ FILMES de CATHERINE DENEUVE
(por ordem de preferência)

01
O ÚLTIMO METRÔ
(Le Dernier Métro, 1980)

direção de François Truffaut 
elenco: Gérard Depardieu, Jean Poiret, Andréa Ferréol,
Paulette Dubost e Heinz Bennent

02
Os GUARDA-CHUVAS do AMOR
(Les Parapluies de Cherbourg, 1964)

direção de Jacques Demy
elenco: Nino Castelnuovo e Anne Vernon

03
TRISTANA, uma PAIXÃO MÓRBIDA
(Tristana, 1970)

direção de Luis Buñuel
elenco: Fernando Rey e Franco Nero

04
REPULSA ao SEXO
(Repulsion, 1965)

direção de Roman Polanski
elenco: Ian Hendry, John Fraser e Yvonne Furneaux

05
A BELA daTARDE
(Belle de Jour, 1967)

direção de Luis Buñuel
  elenco: Jean Sorel, Michel Piccoli, Pierre Clémenti,
Geneviève Page, Francisco Rabal e Françoise Fabian

06   
INDOCHINA
(Indochine, 1992)

direção de Régis Wargnier
elenco: Vincent Perez, Linh Dan Pham, Jean Yanne
e Dominique Blanc

07
MINHA ESTAÇÃO PREFERIDA
(Ma Saison Préférée, 1993)

direção de André Téchiné
elenco: Daniel Auteuil e Marthe Villalonga

08
DANÇANDO NO ESCURO
(Dancer in the Dark, 2000)

direção de Lars von Trier
elenco: Björk, David Morse e Joel Grey

09
Os LADRÕES
(Les Voleurs, 1996)

direção de André Téchiné
elenco: Daniel Auteuil, Laurence Côte e Benoît Magimel

10
PLACE VENDÔME
(Idem, 1998)

direção de Nicole Garcia
elenco: Jean-Pierre Bacri, Emmanuelle Seigner e Jacques Dutronc

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