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“limite” de mário peixoto |
Uma ideia na cabeça e uma câmera na mão.
GLAUBER ROCHA
A indústria cinematográfica brasileira arrasta há anos os mesmos problemas:
dificuldade em captar recursos, roteiros capengas, direção amadora ou convencional,
figuração comprometedora e exibição restrita. Mas merece ser garimpada. Eu o conheça desde que me entendo por gente e, ainda menino, colecionava fotografias e
cartazes, e nas sessões da tarde na Globo ria vendo as
ingênuas chanchadas de Oscarito-Grande Otelo e as comédias caipiras de
Amácio Mazzaropi. Ainda na TV, não perdia as produções da Vera Cruz,
admirando “O Cangaceiro” (1952), de Lima Barreto, o primeiro filme brasileiro a
obter êxito internacional, e
“Sinhá Moça” (1953), de Tom Payne, com Eliane Laje, Anselmo Duarte e Ruth
de Souza. A produção de época, versão do romance de Maria Dezonne Pacheco, ganhou o Urso
de Prata no Festival de Berlim.
Na condição de cinéfilo, jornalista e comentarista da sétima arte, sempre
estive interessado no CINEMA BRASILEIRO e procuro abordar, com justeza e
imparcialidade, a sua trajetória de altos e baixos. Adolescente, descobri Bruno
Barreto, Carlos Diegues e Arnaldo Jabor, e muito escrevi sobre eles na época. De Bruno assisti com prazer “A Estrela Sobe”
(1974) e “Dona Flor e seus Dois Maridos” (1976). Ainda me lembro do frescor
erótico de José Wilker e Sonia Braga. Diegues se esforça, acertando mais ou
menos em “Xica da Silva” (1976) e “Chuvas de Verão”
(1977). No entanto, o seu melhor trabalho, “Bye Bye Brasil” (1979), é um dos bons filmes da cinematografia nacional.
De carreira curta e densa, Jabor brilha nos nelsonrodriguianos “Toda
Nudez Será Castigada” (1973) e “O Casamento” (1975), e no sensual “Eu Te Amo”
(1980). “Eu Sei Que Vou Te Amar” (1984), centrado nas lembranças e discussões
de um jovem casal recém-separado, levou prêmio em Cannes de Melhor Atriz para
Fernandinha Torres. Realmente lamentável a troca do diretor, de cinema inteligente
por um jornalismo de olho no próprio umbigo. Em 2010 ele voltou a filmar, mas “A Suprema
Felicidade” não foi bem recebido. No Centro de Estudos Brasileiros, em Barcelona, assisti expressivos
filmes nossos, inclusive o pioneiro Humberto Mauro e seus “Brasa Dormida”
(1928) e “Ganga Bruta” (1932). Discordo do título de “nossos maiores cineastas”
dado pelos especialistas a Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, nem considero
que o cinema nacional atravessa uma fase radiante, depois dos anos duros
pós-extinção da Embrafilme pelo governo Collor de Mello. Produção periódica não
significa qualidade.
Autor da obra-prima “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1963), Glauber
se deixou possuir nele pelo russo Sergei Eisenstein. Revela chispas de
genialidade em “Barravento” (1961), “Terra em Transe” (1966) e “O Dragão da
Maldade Contra o Santo Guerreiro” (1968). Mas o seu último trabalho, “A Idade
da Terra” (1980), não passa de um quebra-cabeças neurótico e desconexo. Nelson
Pereira dos Santos comove no sóbrio “Vidas Secas” (1963), na comédia “Como Era
Gostoso o meu Francês” (1970) e no drama baseado em Graciliano Ramos, “Memórias
do Cárcere” (1983). O resto aborrece, inclusive as artificiais adaptações de
Jorge Amado, “Tenda dos Milagres” (1977) e “Jubiabá” (1986).
Nos anos 1960, o Cinema Novo despiu o país, teve prestígio no
mercado internacional e arrebatou prêmios em festivais. Soube conciliar forte
invenção cinematográfica com análise funda de conjunturas sociais. Nesta década
do clássico “O Pagador de Promessas” (1962), de Anselmo Duarte, Palma de Ouro
em Cannes, surgiram dramas irreverentes dirigidos por Ruy Guerra (“Os Cafajestes”,
1961, e “Os Fuzis”, 1963); Paulo César Saraceni (“Porto das Caixas”, 1962); Luís
Sérgio Person (“São Paulo S/A”, 1964, e “O Caso dos Irmãos Naves”, 1967), Walter
Hugo Khouri (“Noite Vazia”, 1964), Joaquim Pedro de Andrade (“O Padre e a Moça”,
1965, e “Macunaíma”, 1969), Roberto Santos (“A Hora e a Vez de Augusto Matraga”,
1965), Maurice
Capovilla (“Bebel, a Garota Propaganda”, 1967), Ozualdo Candeias (“A Margem”, 1967),
Antonio Carlos Fontoura (“Copacabana me Engana”, 1968) e Gustavo Dahl (“O Bravo
Guerreiro”, 1968).
O Cinema Novo dividiu a classe cinematográfica e, na maior parte
dos casos, esvaziou as salas de projeção. A origem do nosso cinema experimental,
investindo em possibilidades incomuns, tinha começado décadas antes, no vertiginoso “Limite”
(1930), com produção, roteiro, direção e montagem de Mário Peixoto. Do mesmo
período, lembro-me do realismo sertanejo, da caatinga, Lampião e seu grupo
filmados pelo mascate sírio Benjamim Abraão Jacó. Imagens perturbadoras, luz
solar estourada. Mais adiante, o documentário se destacaria em
“O País de São Saruê” (1971), de Vladimir Carvalho, e “Cabra Marcado para
Morrer” (1984), de Eduardo Coutinho, entre outros.
Até o final dos anos 1940, o amadorismo do CINEMA BRASILEIRO era visível
em roteiristas, técnicos e intérpretes. Quase tudo era na base do improviso.
Fotografava-se mal e o som gravado era inaudível. Exploravam-se os musicais,
comédias de sucesso no teatro e melodramas folhetinescos. A criatividade
superava entraves, mas, na maior parte, a qualidade deixava a
desejar. Nos anos 1950, o cinema pomposo invadiu o Brasil, marcando o início
da industrialização em moldes de Hollywood. Nasceu a Companhia Cinematográfica Vera
Cruz. “O Quatrilho” (1995) tem o estilo desse estúdio de produções
afetadas. A figura maior da Vera Cruz, Alberto Cavalcanti, cineasta brasileiro
valorizado na Europa desde o cinema mudo, assumiu a direção geral de produção,
supervisionou a construção dos estúdios, lançou diversos atores e trouxe
profissionais ingleses, franceses e austríacos. Depois
montou sua própria produtora, Kino Filmes, realizando três filmes, entre eles, “O
Canto do Mar” (1953).
Abrindo caminho para o Cinema Novo, “Rio 40 Graus” (1955), de Nelson
Pereira dos Santos, foi recebido com elogios. Influenciado pelo neo-realismo
italiano, o CINEMA BRASILEIRO finalmente encontrava sua identidade, ultrapassando
os interesses do mercado e investindo na inquietação artística. Pedra fundamental
do movimento cinemanovista, o drama de episódios “Cinco Vezes Favela” (1961), lançou prometedores cineastas: Marcos Faria (“O Favelado”),
Miguel Borges (“Zé da Cachorra”), Carlos Diegues (“Escola de Samba Alegria
de Viver”), Joaquim Pedro de Andrade (“Couro de Gato”) e Leon Hirszman (“Pedreira
de São Diogo”).
No final de 1960 e parte de 1970, foi muito falado o radical e alegórico Cinema
Marginal ou da Boca do Lixo, ou ainda Cinema do Terceiro Mundo. Rogério
Sganzerla (“O Bandido da Luz Vermelha”, 1968), Júlio Bressane (“Matou a Família
e foi ao Cinema”, 1969), Andréa Tonacci (“Bang Bang”, 1971) e Carlos
Reichenbach (“Amor Palavra Prostituta”, 1979) são os nomes mais conhecidos
deste movimento. A Belair, produtora de Bressane e Sganzerla,
realizou uma série de filmes de baixo custo, feitos em esquema ágil de
produção. Na década de 1970, multiplicaram-se os filmes. O cinema dito de esquerda
alimentava-se das verbas do Instituto Nacional do Cinema e, depois, da Embrafilme.
Produtores uniram a chulice ao erotismo, e lançaram
a pornochanchada.
Entretanto, esta época não foi de toda negativa, revelando clarões
inspirados em “A Casa Assassinada” (1970), de Paulo César Saraceni, do romance
de Lúcio Cardoso; “Os Deuses e os Mortos” (1970), de Ruy Guerra; “A Rainha
Diaba” (1971), de Antônio Carlos Fontoura, com interpretação antológica de Milton Gonçalves; “Os Inconfidentes” (1971) e “Guerra Conjugal” (1974), adaptado de
contos de Dalton Trevisan, de Joaquim Pedro de Andrade; o notável “São Bernardo”
(1971), de Leon Hirszman; “Tati, a Garota” (1972), de Bruno Barreto; “Morrer de
Amor” (1972), de Jorge Ileli; “Os Condenados” (1973), de Zelito Viana, do livro
de Oswald de Andrade; “Lição de Amor” (1975), de Eduardo Escorel; “Marília e Marina”
(1976), de Luiz Fernando Goulart; “Gordos e Magros” (1976), de Mário Carneiro; e o desconcertante “A Lira do Delírio” (1977),
de Walter Lima Jr.
O nosso mais famoso cineasta, o baiano Glauber Rocha, encerrado numa
fábula selvagem, morreu jovem, em 1981, aos 42 anos, depois de exílio
voluntário em Sintra, Portugal. Nessa época não havia mais a câmara na mão, em
movimento, oscilando. Um momento cinematográfico infértil, destacando-se nas trevas Arnaldo Jabor
e o argentino Hector Babenco em “Pixote
– A Lei do Mais Fraco” (1981), obra que seduziu plateias e abriu as
portas do mercado internacional para o seu diretor, graças a uma história
realista e fabulosa atuação de Marília Pêra como a prostituta Suely.
Ainda nos anos 1980, a direção de Ícaro Martins e José Antônio
Garcia em “O Olho Mágico do Amor” (1981); Leon Hirszman no contundente “Eles
não Usam Black-tie” (1981); Walter Lima Jr no cândido “Inocência” (1982);
Carlos Alberto Prates Correia em “Noites do Sertão” (1983), adaptado de “Buriti”
de Guimarães Rosa; André Klotzel no satírico “A Marvada Carne” (1985); Suzana
Amaral em “A Hora da Estrela” (1985); Wilson Barros em “Anjos da Noite” (1986);
Caetano Veloso no godarniano “O Cinema Falado” (1986); Sérgio Toledo em “Vera”
(1986); Sérgio Bianchi no cínico “Romance” (1987); Bruno Barreto em “Romance da
Empregada” (1987); e
José Antônio Garcia em “O Corpo” (1989), do conto de Clarice Lispector. Sem a Embrafilme nos anos 1990, rodaram unicamente 14 produções em
três anos. Com o sucesso do escrachado “Carlota Joaquina - Imperatriz do Brasil”
(1995), de Carla Camuratti, acolhendo mais de um milhão de espectadores,
criou-se o
buxixo do renascimento do CINEMA BRASILEIRO. A obra não passa de uma comédia
amadora, esquecível.
Além de Camuratti, o nosso cinema foi pilotado por outras mulheres:
Gilda de Abreu, Teresa Trautman, Norma Benguell, Tizuka Yamasaki, Sandra Werneck.
Entre todas elas, destaco a sensibilidade e boas intenções de Ana Carolina (“Amélia”,
1997), Suzana Amaral, Daniela Thomas, Tata Amaral (“Um Céu de Estrelas”, 1996),
Monica Gardemberg (“Jenipapo”, 1996), Eliana Caffé (“Kenoma”, 1998), Lucia
Murat (“Brava Gente Brasileira”, 2000), Laís Bodanski (“Bicho de Sete Cabeças”,
2000) e Lina Chamie (“Tônica Dominante”, 2001). Pouco comentado, Ugo Giorgetti (“Sábado”, 1995) contribui para a
história do nosso cinema. O conjunto da sua obra tem compromisso com a
geografia de São Paulo. Em “Uma Outra Cidade”, para a tevê Cultura, descreve a
metrópole a partir de cinco poetas: Roberto Piva, Jorge Mautner, Rodrigo de
Haro, Cláudio Willer e Antonio Fernando De Franceschi. Walter Salles rodou com sensibilidade “Terra
Estrangeira” (1995) e “O Primeiro Dia” (1998), ambos em colaboração com Daniela
Thomas. Seu “Central do Brasil” (1997) levou o Urso de
Ouro no Festival de Berlim, o Globo de Ouro, o BAFTA e mais 52 prêmios
internacionais. “Abril Despedaçado” (2001), também dele, versão do livro do
albanês Ismail Kadaré, revela-se lírico.
Nos 1990 e nos primeiros anos do novo milênio, gosto especialmente de “A Ostra e O Vento” (1997) de Walter Lima Jr., “Baile Perfumado” (1997),
dos estreantes pernambucanos Paulo Caldas e Lírio Ferreira; e “O Coração
Iluminado” (1998), de Hector Babenco. Djalma Limongi Batista (“Bocage, o
Triunfo do Amor”, 1997), Sérgio Resende (“A Guerra de Canudos”, 1998) e Flávio
R. Tambellini (“Bufo & Spallanzani”, 2000) sempre foram cineastas de olho
principalmente na bilheteria. Aluísio Abranches (“Um Copo de Cólera”, 1998),
Roberto Santucci Filho (“Bellini e a Esfinge”, 2001) e Beto Brandt (“O
Invasor”, 2002) não desenvolveram a carreira.
Neste início da primeira década do século XXI, uma proliferação de
produções enfadonhas e previsíveis. Salvam-se o encanto cômico de “Domésticas –
O Filme” (2001), de Fernando Meireles e Nando Olival; o sensível e arrebatador “Lavoura
Arcaica” (2001), de Luiz Fernando Carvalho; o expressivo “Carandiru” (2003), de
Hector Babenco; e “Amarelo Manga” (2003), de Cláudio Assis. Tempo também de Guel
Arraes (“O Auto da Compadecida”, 2000, e “Caramuru – A Invenção do Brasil”,
2001), apostando na estética, mas escorregando no arremedo televisivo; Carlos
Gerbase (“Tolerância”, 2000); da competência de Andrucha Waddington no sucesso
de “Eu Tu Eles” (2000); e Jorge Furtado (“Houve uma Vez Dois Verões”, 2001),
que ainda nos deve o filme
honesto que esperamos dele, vinte e sete anos depois do aclamado curta
“Ilha das Flores” (1989).
Nos anos seguintes, alguns filmes fizeram história: “Cidade de
Deus” (2002), de Fernando Meirelles e Kátia Lund; “Madame Satã” (2002), de
Karim Ainouz; “Lua Cambará – Nas Escadarias do Palácio” (2002), de Rosemberg
Cariry; “Nina” (2004), de Heitor Dhalia; “Cidade Baixa” (2005), de Sérgio
Machado; “Casa de Areia” (2005), de Andrucha Waddington; “Cinema, Aspirinas e
Urubus” (2005), de Marcelo Gomes; “Estômago” (2007), de Marcos Jorge; “Tropa de
Elite 1 e 2” (2007 e 2010), de José Padilha; “Feliz Natal” (2008), de Selton
Mello; “Linha de Passe” (2008), de Walter Salles e Daniela Thomas; “Viajo
Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” (2009), de Marcelo Gomes e Karim Ainouz; “A
Festa da Menina Morta” (2009), de Matheus Nachtergaele; “O Palhaço” (2011), de
Selton Mello; “A Febre do Rato” (2011), de Cláudio Assis; “O Som ao Redor”
(2012), de Kleber Mendonça Filho; “Tatuagem” (2013), de Hilton Lacerda; “O Lobo
Atrás da Porta” (2013), de Fernando Coimbra; e “Meu Amigo Hindu” (2015), de
Hector Babenco.
A despeito de esforços individuais, poucas produções atuais escapam
do convencional. Temos diretores competentes, atores que dão conta do recado e
maravilhosos fotógrafos, mas ainda não encontramos o caminho viável, libertário e talentoso. Somos o país do carnaval, o país do futebol,
o país da telenovela. A sensualidade é nossa, o deboche é nosso. O CINEMA BRASILEIRO reflete isso muito bem: a realidade escandalosamente surreal e
escapista. Portanto, mesmo com desacertos, palmas para nossos filmes. Não se pode definir as perspectivas d e um futuro próximo. No momento, passamos mais uma crise das tantas pelas quais
tem passado esta brincadeira cara e frágil, esta mescla de arte, indústria e
divertimento inigualável – um sonho sem fim.
Fonte
“História Ilustrada dos Filmes Brasileiros: 1929-1988”
de
Salvyano Cavalcanti de Paiva
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