abril 26, 2012

************************* SALA VIP: “ISADORA”




A MARCA de uma REBELDE

É possível um filme imperfeito se aproximar da perfeição? Segundo comentário da famosa crítica de cinema Pauline Kael, “Grandes filmes raramente são perfeitos”. Portanto, a resposta é sim, principalmente se ele for centrado num personagem excepcional interpretado com corpo e alma. ISADORA é uma prova evidente disso. Injustamente esquecido, quase desconhecido do grande público, sua extrema perícia na atuação iluminada de Vanessa Redgrave produz um efeito inesquecível, principalmente em quem se sente atraído por dança ou figuras históricas irreverentes. Sem a deslumbrante Vanessa, o filme corria o risco de cair no ridículo. Com ela, passou a beirar a perfeição na caprichosa evocação da sacerdotisa do balé moderno, Isadora Duncan (1877 - 1927), uma artista sexualmente desinibida que revolucionou o mundo da dança e desafiou os conservadores. 

A atriz inglesa passou seis meses se preparando para o papel, repetindo incansavelmente movimentos coreográficos. Aos 31 anos, ela envelhece em cena com realismo e adota um sotaque norte-americano sem cair na caricatura. É quase impossível imaginar outra atriz de sua época no seu lugar. Talvez Julie Christie ou Jane Fonda.

Difícil hoje ver o filme à luz do que era originalmente: uma obra de fluxo de quase três horas, aparentemente mais caótica e obstinada. Lançado com pouco alarde e dirigido pelo talentoso Karel Reisz (1926 - 2002), prejudicou-se quando seu estúdio, a Universal, cortou 40 minutos da metragem, numa nova versão mais discreta (cenas de nudez explícitas foram eliminadas) que desperdiçou personagens e momentos essenciais da vida da biografada.

Incompreendido, embora com fãs ardorosos, o original terminou por ser exibido no Festival de Cannes e Vanessa levou para casa o prêmio de Melhor Atriz, salvando a pátria. Em seguida, desapareceu da paisagem, mesmo com a atriz concorrendo ao Oscar pelo papel (ela acabou perdendo para um discutível empate entre Katharine Hepburn e Barbra Streisand).  Nos anos 90, lançado em VHS sem cortes, não teve qualquer repercussão e desapareceu novamente. O último prego no caixão aconteceu este ano, quando a British Academy Film Awards premiou Vanessa Redgrave pelo conjunto de obra e clips de praticamente todos os seus filmes emblemáticos foram exibidos, mas se “esqueceram” de ISADORA. No entanto, o longa é belíssimo e merece ser reverenciado. Ele descreve a existência de uma trágica dançarina abandonada pelo pai, pelos amantes, e, finalmente, pela plateia que a idolatrava. Pior de tudo, seus dois filhos se afogam no rio Sena em um acidente de carro e ela morre aos 50 anos estrangulada por uma echarpe que se enrola na roda de um carro de luxo.

Mulher de heroica coragem, perseverante, feminista, lutou contra uma sociedade rígida e hipócrita, chocando o público com suas atitudes - e era essa a intenção. Ela não se constrangia em mostrar seu corpo nu, pregava o amor livre e criou moda na maneira de se vestir. Idealista e autodestrutiva, usou a habilidade artística para desafiar a dança tradicional, as convenções morais e impor seu senso de liberdade. Tudo isso nas primeiras décadas do século 20. Ao se rebelar contra as técnicas da dança clássica e as ideias convencionais de seu tempo, inspirou-se na Grécia antiga para criar movimentos ousados, apresentando-se descalça, sem cenário ou efeitos de luz e com túnicas que quase nada escondiam do seu corpo. Com a iminente Revolução Russa e a Primeira Guerra Mundial no horizonte, Isadora manifestou as suas dúvidas políticas e morais em arte, transformando as injustiças sociais e as emoções ao seu redor em poesia dançada. 

O filme explora o desejo da dançarina em difundir e popularizar a dança moderna como uma forma de rebelião contra a moral convencional. Um caso em questão é o seu compromisso em educar através da dança e do pensamento os filhos dos mais humildes, acreditando que poderia beneficiá-los. Ironicamente, quando dá à luz a uma filha fora do casamento, seus patrocinadores ricos deixam de bancar sua escola inovadora. Em última análise, o argumento se concentra em uma mulher que vivia na contramão, não tendo medo de esconder sua natureza selvagem, o pensamento liberal, o ateísmo e o desapego ao matrimônio. Revolucionária, mesmo em decadência, sem dinheiro e humilhada pelo público norte-americano, recusou-se a pedir desculpas por suas definições de beleza e arte, inspirando muita gente com o seu espírito livre e se tornando uma das mais importantes dançarinas de todos os tempos.

Dez anos antes de ISADORA, o diretor Karel Reisz fundou com Lindsay Anderson e Tony Richardson (marido de Vanessa de 1962 a 1967), o movimento Free Cinema, cujo objetivo era apostar no realismo, rompendo com a tradição do cinema convencional inglês. Assim surgiram clássicos como “Um Gosto de Mel / A Taste of Honey” (Richardson, 1961), “Esta Vida Esportiva / This Sporting Life” (Anderson, 1963) e, especialmente, “Deliciosas Loucuras de Amor / Morgan: A Suitable Case for Treatment” (Reisz, 1966), que evoca de forma humorística um caso de loucura pós-divórcio. No principal papel feminino, Vanessa Redgrave ganhou seu primeiro prêmio em Cannes e uma indicação ao Oscar, tornando-se uma estrela internacional. 

Quando Reisz foi escolhido para dirigir ISADORA, todos desconfiaram que não seria uma cinebiografia convencional. E estavam certos. Singular, ele apostou num tratamento audacioso, ambicioso e construído experimentalmente. Inspirado na autobiografia “Minha Vida / My Life” (1928), o diretor parece mais interessado na mulher do que na artista, ao contrário das cinebiografias habituais que enaltecem o trabalho do biografado. 


Numa velocidade vertiginosa, às vezes confusa, a vida de Isadora Duncan é repassada como uma viagem alucinante. Paradoxalmente, o momento mais vibrante da obra talvez seja na sua temporada na tradicional Rússia, simpatizando-se com o comunismo e casando com o poeta Sergei Iesseienin (excelente Ivan Tchenko). Isadora viveu muitas outras histórias impetuosas de amor, inclusive com mulheres – que o filme apenas insinua de leve na pele da bela Maria, que a acompanha na última parte de sua vida, isolada na Riviera Francesa enquanto escrevia suas memórias -, mas nenhuma das aventuras amorosas retratadas comove o público. 

O premiado Jason Robards, como o milionário francês Eugene Singer, é quase figuração de luxo. O mesmo acontece com o excêntrico cenógrafo teatral Gordon Graig (James Fox, de “O Criado / The Servant”, 1963, de Joseph Losey). A força do personagem e da atriz é tão imperiosa que devora a importância de seus amores e até mesmo de seus fracassos. Sutil e elegante, o filme é um tributo caleidoscópico a uma artista lendária totalmente comprometida com a arte, a verdade e a beleza.


ISADORA (Idem, 1968). País: Inglaterra e França; Duração: 138 mins.; Cor; Gênero: Drama; Produção: Raymond e Robert Hakim (Hakim, Paris Film / Universal Pictures); Direção: Karel Reisz; Roteiro: Melvyn Bragg e Clive Exton, adaptado da biografia de Isadora Duncan e do livro de Sewell Stokes; Fotografia: Larry Pizer; Edição: Tom Priestley; Música: Maurice Jarre; Cenografia: Jocelyn Herbert, Zeljko Senecic e Michael Seymour (d.a.); Vestuário: Ruth Myers; Elenco: Vanessa Redgrave (“Isadora Duncan”), James Fox (“Gordon Craig”), Ivan Tchenko (“Sergei Iessienin”), John Fraser, Jason Robards (“Eugene Singer”), Vladimir Leskovar, Cynthia Harris e Bessie Love

Nota: **** (muito bom)

Prêmios: Melhor Atriz no Festival de Cannes;
Melhor Atriz da Associação Nacional dos Críticos de Cinema dos EUA;


28 comentários:

Marcelo Castro Moraes disse...

Se fosse somente esse, mas existem vários filmes muito bons, que acabam se perdendo no tempo, mesmo possuindo suas qualidades. O legal aqui no RS, é que tem a Usina do Gasômetro, que de vez em quando, exibe filmes ótimos, mas esquecidos pela maioria do publico. Não me surpreenderia se esse um dia fosse exibido por lá.

João Roque disse...

Eu adorei este filme e acho Vanessa Redgrave uma das maiores actrizes vivas.

Sibely Vieira disse...

Adorei,ví o filme baixado e amei...:)

Unknown disse...

Such a beautiful, talented lady. The first movie I saw her in was "Trojan Women" in school!

Thazio Menezes disse...

bacana. vou procurar o filme!

Faroeste disse...

Nos meus tempos de adolescente, ou entrado na adolescencia, havia em Salvador um cinema chamado de Arte. Só lançava filmes deste quilate, onde podiamos ver coisas magnificas e que hoje ficamos alijados.

Adoraria ver esta fita com a Vanessa, que me parece uma beleza de trabalho!
Mas: onde encontrá-la?

Caso algum leitor veja esta minha solicitação e veja condições de eu ser atendido, solicito contato comigo pelo email abaixo.
jurandir_lima@bol.com.br

Ruben Celso Nigro Paschoal disse...

que texto maravilhoso Antonio. Eu assisti a este filme, mas não me lembrava muito. A única cena que não esqueci foi a da echarpe. Valeu conferir o filme pelo seu texto. Obrigado.

Rato disse...

"Isadora" foi realmente um filme de que gostei muito quando o vi na estreia (final dos anos 60), mas a que, por uma razão ou por outra, nunca mais voltei. Este teu texto me deu uma vontade enorme de o rever.

Gilberto Carlos disse...

Também não conheço esse filme, mas pelo seu comentário parece ser muito bom.

Anônimo disse...

Nunca assisti esse filme, nossa não tinha ideia que a Aquariana Vanessa era tão bonita. Cynthia

Elisabete Cardoso disse...

não vi

André Setaro disse...

Vi no século passado, em 1972, mais ou menos, há, portanto, 40 anos. Mas 'Isadora' desapareceu de circulação.

disse...

Adoro cinebiografias, mas ainda não conhecia esta. Também considero Vanessa uma das melhores atrizes vivas. Só por estar interpretando uma mulher com história de vida tão extraordinária quanto Isadora Duncan já vale a pena conferir.
Abraços!

Suzane Weck disse...

Achei sensacional lembrares este filme com a presença fora de série de Vanessa.È impressionante como tantos filmes e atores bons entram no nosso esquecimento,sobrepujados por outros bem menos qualificados.Ainda bem que temos um Falcão no nosso mundo de blogs que está atento ás nossas impercíptibilidades.Meu grande abraço.

Fernando Sobrinho disse...

Um filme que eu sempre quis ver...

Fabbiana Garbo disse...

Acho a cena final desse filme muito trash. Chega a parecer cômico.

Rubi disse...

Acredita que ainda não conhecia este filme Antonio? Ainda bem que tenho o seu blog, portanto, vou procura-lo o quanto antes.

*Em relação ao livro de Lilli, se tiver oportunidade, compre. É uma autobiografia sensacional. Você vai gostar!

Fabbiana Garbo disse...

Ainda tem um boato de que quando a Isadora entrou no carro, ela gritou para as amigas: Adeus, queridas! Vou para a glória!! Morreu enforcada minutos depois!

Mario Salazar disse...

Tendré presente la película, me parece un personaje interesante, rebelde y en relación a intelectuales, seguramente que bello también teniendo a Redgrave de cuerpo escultural en su época. Abrazos

J. BRUNO disse...

Acho que eu sequer tinha ouvido falar dele Antonio, até ler seu post. Realmente parece ser um filme grandioso do tipo que merece ser relembrado, certamente irei procurar por ele! Forte abraço caro amigo!

Nasser disse...

Falcão, quem é Ivan Tchenko? Nunca ouvi falar desse ator. O Fox também não é muito conhecido.

Marccelie Machado disse...

fantastica a critica, é tudo isso memso1

Marccelie Machado disse...

e vanessa dancou com alma mesmo

siby13 disse...

Perfeita atuação de Vanessa.
Não poderiam ter escolhido atriz melhor, ela atuou de forma magnífica e prova que vem de uma linhagem especial. :) amei!!!! Isadora é tudo de bom!
Palmas para James Fox, excelente ator! adoro seus filmes.
:)...❤...

Luís disse...

Não conhecia o titulo, apenas conhecia a dançarina, de quem já ouvi bastante falar. Eu estou ansioso para assistir a esse filme agora.

Rosane De Miranda disse...

lida demais essa mulher... estupenda atriz... amo de paixão

Unknown disse...

não a conhecia, mas já agora vejo que era uma grande atriz!

http://monteolimpoblog.blogspot.com/

Victor Ramos disse...

Já assistiu Os Demônios (The Devils), do Ken Russell? É com a Vanessa Redgrave também... grande filme. Veja logo.

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